sexta-feira, março 13

RBS e políticas de drogas, despreparo ou sacanagem? Um ensaio comparativo.

Uma tarefa interessante. Dois momentos distintos, em duas cidades, em um mesmo dia. E uma breve análise sobre como o Partido RBS de Comunicação (como lembra o jornalista Wladimir Ungaretti) ganha por hours-concours o prêmio da mediocridade, quando a pauta é políticas de drogas.

1º Momento

Quando: Quinta-feira, 12 de Março de 2009.
Onde? Viena, Áustria.
Contexto: XX Seção Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas (UNGASS). Em algum lugar luxuoso de Viena, a ONU reúne representantes do mundo inteiro para definir as diretrizes de acordos internacionais sobre políticas de drogas para os próximos dez anos. De um lado do ringue, as organizações estadunidenses (e alguns puxa-sacos distribuídos em vários países), defendendo propostas já vencidas moralmente, insistindo em tentar provar que a Guerra às Drogas é a melhor saída e que "um mundo sem drogas" é possível. Do outro lado do ringue, organizações de todo o resto do mundo (com exceção dos puxa-sacos) dizendo que ninguém suporta mais esse tipo de bobagens, e que precisamos dar prioridade às políticas mais sérias, como por exemplo as de Redução de Danos (Harm Reduction). Porque elas acolhem as pessoas que usam drogas ao invés de desejar exterminá-las, e, por isso, trazem maior eficácia do que interná-los e dopá-los em leitos de hospital (como se todos os usos de drogas fossem epidemias). Representantes dos países pronunciavam-se pela "posição oficial" diante do assunto. Impera o puxa-saquismo e o lero-lero. Chega a vez do Brasil.

Quem? General Jorge Armando Félix, Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, representante da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, o SENAD. O General Félix não é necessariamente um militante pelo direito das pessoas que usam drogas. Aliás, não mesmo: pouco tempo atrás, se colocou contrário à abertura dos arquivos da ditadura, dizendo que temia pelas pessoas que pudessem ficar expostas. Como se historiadores interessados e grupos contra a tortura, dentre outros cidadãos brasileiros, fossem praticá-la deliberadamente como os cães do regime. Mas enfim.

O que: Mesmo assim, não sendo nenhum militante histórico, o fato é que, na reunião da UNGASS, foi através da boca deste General que saíram declarações de apoio "quanto à dimensão ética e à perspectiva dos direitos humanos": "O país tem buscado soluções isentas de conotação moral, valorizando e promovendo intervenções de redução de danos como estratégia de saúde pública".

Lá pelas tantas, o General leu um parágrafo bem fraquinho. Aquela coisa, pra inglês ver. O papel aceita tudo. Mas tava lá: citou as últimas mudanças nas leis sobre drogas, que teriam "abolido definitivamente a pena privativa de liberdade para o cidadão usuário de drogas". Citou que, "em dezembro de 2008, o Brasil deu mais um importante passo na modernização legislativa e na garantia dos direitos humanos, ao estabelecer que conduta que não envolva prática de mercancia não pode ser considerada como tráfico ilícito de drogas". Tudo bem, todos nós sabemos que isso é mentira, pois na prática, a teoria é outra. O que nos importa, aqui, é que é uma declaração oficial.

O General disse ter clareza de que "as metas de um 'mundo sem drogas'” se mostraram inatingíveis, com visível agravamento das “consequências não desejadas, tais como aumento da população carcerária por delitos de drogas, aumento da violência associada ao mercado ilegal das drogas, aumento da mortalidade por homicídio e violência entre jovens - com reflexo dramático nos indicadores de mortalidade e de expectativa de vida da população", sem esquecer da "exclusão social por uso de drogas" e "a ampliação do mercado ilegal".

Por fim, deixa claro que o Brasil está comprometido, por exemplo:

• no reconhecimento das estratégias de Redução de Danos, como medida de ampliação de acesso às ações de saúde pública dirigidas aos dependentes de drogas e aos portadores de HIV/AIDS,
• na garantia dos Direitos Humanos dos cidadãos usuários de drogas.

Pois bem. Não é muito bonito, mas poderia ser pior. São as diretrizes das leis no Brasil lá, na ONU. Mas, porque é que raramente policiais fazem o Termo Circunstanciado? Porque é que a violência nas abordagens policiais só aumenta? Porque é que se insiste em tratar do assunto nos moldes de uma guerra, e não como uma questão de Saúde Pública?

Vamos falar sobre como a mídia sensacionalista e despreparada do Partido RBS (Grupo que monopoliza a mídia no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina) abordou o assunto drogas, no mesmo dia desta declaração.

2º Momento

Quando: Quinta-feira, 12 de Março de 2009.
Onde: Porto Alegre, Brasil.
Contexto: Algum estúdio do Partido RBS. Cenário e atores à postos, grava-se o programa Conversas Cruzadas, transmitido pela TVCom. Lasier Martins comanda à mão de ferro o debate entre quatro "especialistas" gaúchos diante da seguinte questão: "É possível conter o problema das drogas sem priorizar o entrada nas fronteiras?". Oitenta e oito por cento das pessoas disseram que "sim". Ok, não lembramos exatamente a frase como era, mas era uma dessas perguntas com resposta já embutida. Não importa. Começa mais um debate vazio sobre drogas através do Partido RBS.

Quem: Estavam presentes ao programa o procurador de Justiça Miguel Velasquez (representando o Ministério Público), Dra Helena Barros (Dra. em Neuropsicofarmacologia e coordenadora do programa VIVA VOZ), o delegado Roberto Pimentel (DENARC) e Rogério Santos (Jornalista de Montenegro/RS).

O que: Ligamos a televisão após receber um aviso sobre o espetáculo. Pegamos a coisa no meio, mas foi o suficiente. O sinal da TVCom aqui é que estava péssimo. Mas após alguns tapas (na televisão), tudo fica bem, e podemos ouvir a conversa cruzada.

Já estava a Dra Helena Barros comentando sobre usos de drogas em festas de música eletrônica. "Eles preparam tudo inclusive, até deixam espaços mais refrigerados, incluindo todo um consumo de água, que já antevê que haverá o consumo da droga". Ora, ela pensava o que? Que as pessoas quisessem se matar umas às outras? Até onde nós sabemos, pessoas vão às festas com o intuito de se divertir. Quem não consegue curtir a onda são as pessoas que desenvolvem problemas com drogas. O que, diga-se de passagem, não é nenhum caso de polícia. Além disso, pessoas passando por problemas com drogas são minorias em festas - vide o Carnaval e a Oktoberfest. O delegado Pimentel comenta: "é, e eles vão pra essas festas já preparados... Mas não tem tráfico lá, as pessoas mesmo distribuem". Informações de qualidade. Por pouco não encerraram o assunto falando sobre os perigosos traficantes disfarçados em barracas de cachorro-quente, ou sobre o perigoso fluxo do LSD distribuído nas escolas através dos adesivos da Disney®.

Dra Helena retoma. Apontou ser o uso de drogas (sic) "um problema cultural" a ser combatido desde o início, na família, afinal "não se deve usar uma substância para modificar a consciência". Olhos arregalados: uma especialista em Neuropsicofarmacologia disse isso? Será que ela é contra a psiquiatria também? Ou é só contra o chimarrão? Que incoerência. Para dizer as culturas dos usos de drogas "não são normais", ou que devem ser extintas, esta doutora só pode ter MATADO todas as disciplinas de etnofarmacologia. E o pior é que o programa que coordena, VIVA VOZ (ligado ao SENAD), têm o claro intuito de operar através dos pressupostos do SUS. O lema do programa diz: "É bom falar com quem entende" - e tenta se afastar de abordagens repressivas. Nos assusta, portanto, o fato de a Dra. Helena não ter demonstrado no programa um nível de informação compatível com sua função e com seus títulos. Sem responder a nada disso, o procurador de justiça Miguel Velasquez diz: "os pais devem se perguntar, será que os seus filhos já tem idade para enfrentar a malícia da noite?". Neste momento, engasgamos. Malícia da noite? Então, é isso: educar sobre drogas é prender filh@s em casa até que tenham idade. Um dia após o aniversário, quem sabe, já estarão preparados para a malícia da noite. Certo. Sem querer ficar de fora do festival de bobagens, por sua vez, Lasier cobra blitz na BR 386: "Senhor delegado, faço o trecho Tabaí-Canoas há quarenta anos, e nunca pararam meu carro". O delegado Pimentel, coerentemente, ressalta que somente são feitas operações a partir de informações detalhadas.

Mas Lasier, militante do Partido RBS, não desistirá facilmente. Noutro momento, atacou o jornalista Rogério Santos:

Lasier PRBS: Você acha importante nos voltarmos às fronteiras?
Rogério: Sim, eu acho que..
Lasier PRBS: (interrompendo) De que forma isso deveria ser feito?
Rogério: Acho que a polícia né...
Lasier PRBS: (interrompendo) A Polícia Federal?
Rogério: Sim, a Polícia Federal, eu acho que...
Lasier PRBS: (interrompendo) Olha, eu acho muito importante você ter tocado neste assunto da Polícia Federal. Eu acho que eles devem ter um papel fundamental.

Tragicômico. Os convidados não estavam ao nível da tosquice exigida pela pauta do programa.

Mais tarde, notamos que ninguém mencionou as políticas de Redução de Danos. Em contrapartida, Lasier disse que o problema, para ele, seria "como arranjar 50 mil leitos para os nossos 50 mil usuários", demonstrando total desconhecimento sobre políticas de Saúde Pública para pessoas que usam drogas. Mas o tema deles não era Saúde Pública, né? Vamos falar de jornalismo então.

Corta para reportagem de rua. Com um microfone apontado para o seu nariz, um transeunte aparece no vídeo, dando sua opinião:

Transeunte 1: Ah, acho que tanto um quanto o outro, repressão e educação né?

Ele só fala isso. E esta resposta é só o que nós, telespectadores, vimos. Ficou claro para nós, telespectadores, que a pergunta era algo como: "você acha a repressão necessária, ou deve ter só educação?". A pergunta não é mostrada. Mas ao responder "tanto um quanto o outro", o transeunte denuncia o sensacionalismo: o repórter fez alusão à duas opções, educação e repressão, como se fossem binômios. Claro que, com este depoimento na medida, o repórter assegura o seu salário - mas não sua integridade. À outra pessoa, o repórter pergunta:

Repórter PRBS: Você acha que a situação das drogas está insuportável?

Dessa vez, a edição mostra a pergunta para nós, telespectadores. E a pessoa demora um segundo para responder. Tarde demais. O microfone volta.

Repórter PRBS: Você acha que sim? Ou...
Transeunte 2: Ah, acho que sim, né? Com certeza, 'tá insuportável essa situação das drogas.

Tosco, coisa de quinta categoria.

A subjetividade passada durante o programa Conversas Cruzadas foi a seguinte: partir da idéia de que o uso de Crack é uma "epidemia", e defender que precisamos impedir a entrada da droga no estado. Desconhecimento total sobre o que é tráfico (pois prender pessoas não resolve a ilegalidade), e desconhecimento total sobre o que são políticas de Saúde Pública (pois o problema, conforme Lasier, se resumia em "fornecer 50 mil leitos para os nossos 50 mil usuários"). "Especialistas" conversando na mais pura mentalidade de gibi, gastando a paciência do telespectador em um debate falso, perguntas sacanas e respostas vazias.

Encerramos com um diálogo entre Lasier Martins e o jornalista Rogério Santos. Rogério estava lá para advogar a respeito de uma tal medida repressora que vêm se adotando na cidade de Montenegro. E lá pelas tantas, contou um causo. Disse que um pequeno vendedor de drogas, obviamente soldado raso do tráfico (os que mais vão presos), perguntou aos policiais que estavam fazendo a apreensão/abordagem: "Isso aqui é forma de sustento da minha família, o que é que a gente vai fazer?"

Ora, eis uma questão social muito profunda, que dá conta do desemprego, mas também de violências estruturais resultantes da própria proibição das drogas. O ex-capitão Rodrigo Pimentel, do BOPE (que inspirou o capitão Nascimento) já tinha se defrontado com isso quando desistiu de invadir o Vigário Geral (leia post sobre Tropa de Elite). O General Félix, em seu depoimento, neste mesmo dia em Viena, já havia lembrado em seu discurso o problema da "exclusão social" oriunda das redes ilícitas. Mas Lasier Martins, militante do Partido RBS, vai direto ao assunto:

Lasier PRBS: E aí, não prenderam ele também?
Roberto: Prenderam.

Prenderam. Está resolvida a questão social profunda da pobreza, do desemprego e das violências estruturais. Rodrigo Pimentel, o ex-capitão do BOPE que inspirou Tropa de Elite, e até o próprio General Félix, encontram-se muito mais avançados no debate sobre drogas que o Partido RBS. Até mesmo os editores de mídias também ligadas à Rede Globo, como o Jornal O Globo, estão mais avançados do que isso. Somente o Partido RBS insiste na mediocridade.

Conclusões:

- Dois momentos interessantes, na arena do debate sobre drogas, nesta esquecível quinta-feira, 12 de Março de 2009.
- Não, nós não temos mais o que fazer.