quarta-feira, maio 24

Reflexões sobre Drogas e Violência - parte dois


Cidadãos de PoA relacionam tráfico de drogas com a criminalidade

Ainda sobre a Conferência de Segurança Urbana: ficamos intrigados ao notar que, através da pesquisa realizada pelo GT de Segurança Urbana da UFRGS nos bairros da capital (com um número de 308 questionários ao total), 155 pessoas disseram que acham "o tráfico de drogas" o maior culpado pela criminalidade.

Em seguida ao tráfico, vinham os seguintes fatores:
* Desemprego................... 132
* Impunidade.................... 92
* Pobreza....................... 86
* Falta de policiamento......... 56

No contexto destes dados e, obviamente, da discussão que se levantou sobre o ocorrido em SP, tentemos discutir abertamente sobre como podemos analisar esta relação entre tráfico de drogas e violência. E também, sobre qual é o "papel" do usuário de drogas nisso tudo, já que ele é tão associado pela violência urbana através do senso comum (idéias cujas origens tentamos pensar na primeira parte).

Sabemos que o tráfico de drogas é somente uma das várias atividades das quais o crime organizado se vale, entre o tráfico de armas, extorsões mediante sequestros, assaltos a bancos, a carros, etc. Porém o tráfico de drogas, em especial o de cocaína, é o mais lucrativo, e certamente a atividade que possibilita a compra dos armamentos necessários para a realização destas outras atividades, bem como também é este dinheiro que possibilitará a "compra" de um ou outro agente infiltrado nas instituições repressoras ou no executivo, que facilitam o trabalho desta empresa ao fazer vistas grossas - seja nos pontos de venda ou nas rotas de distribuição.

A princípio, uma organização criminosa só é "organizada" porque possui tais contatos. E é difícil saber até que ponto isto se dá mais através de "corrupção" do que de "extorsão" - mas como ocorrem na ilegalidade, uma coisa podemos deduzir: são todos estes contratos regidos pela violência. Consideramos que a categoria "traficante" serve muito mais para designar aquelas pessoas que estão nestas instituições (usando togas ou ternos e segurando canetas, etc), do que para os jovens que portam metralhadoras no morro - cujo ofício, aliás, não dura mais do que alguns anos.

Tentando pensar as raízes do problema da violência associada ao comércio de drogas, devemos colocar que este comércio só é extremamente lucrativo porque ele é ilegal: se houvessem regulamentações deste comércio, impedindo a adulteração das mercadorias para aumento dos lucros, ou taxações sobre a compra e a venda, este negócio não seria tão lucrativo quanto é. E, no caso de um programa efetivo de regulamentação do mercado por parte do Estado, este dinheiro deixaria de financiar o crime, para poder financiar quaisquer programas de prevenção sobre drogas realmente eficazes - ou para financiar políticas de inclusão social nas comunidades mais pobres, em cujas manifestações de explícita desigualdade social residem grande parte das causas desta violência que tanto se deseja combater.. ou estamos enganados? Qual têm sido a intervenção e o olhar mais frequente do Estado e da sociedade por estas comunidades, senão a intervenção da repressão e um olhar punitivo?

No morro e nas bocas da periferia estão os primeiros a morrer, e os que menos lucram - e a mesma relação hierárquica e vertical de desgraça, talvez, ocorra também com os policiais selecionados para estar na linha de frente, trocando tiros com estes jovens ao tentar vencer a tal "guerra às drogas". Tudo ocorre no morro, este curioso campo de batalha onde (dizem) parece ser o esconderijo dos verdadeiros inimigos da paz: "os traficantes"...

De qualquer forma, podemos observar que existe nítido interesse, por parte dos traficantes, de que as drogas listadas e tornadas ilícitas continuem proibidas e sofrendo repressão. A lei nº6368/76 sempre serviu, direta ou indiretamente, aos interesses daqueles que lucraram com ela. E, aqui é que a coisa fica perversa: este interesse para que as coisas continuem assim (ilegais e, portanto, lucrativas) está muito mais presente nos "traficantes de toga ou gravata" do que nos "traficantes jovens dos morros". Acreditamos que os jovens que trabalham no vapor, vendendo nas bocas-de-fumo e com uma vivência de poucos anos, não importando o seu cargo (aqueles jovens do documentário Falcão) simplesmente não têm como possuir todo o conhecimento do complexo processo de movimentações pelos sistemas bancário e financeiros internacionais e da lavagem de dinheiro envolvendo parte dos (segundo especialistas) mais de U$300 bilhões movimentados pelo tráfico, anualmente. Alguém já disse, aliás, que se o dinheiro da venda de drogas fosse para os "traficantes-do-morro", as vilas e favelas não estariam cheia de barracos, mas sim de mansões.

É importante pensarmos na estrutura deste negócio. Porém, não podemos cair na ingenuidade de achar que se trata de um sistema homogêneo: várias organizações disputam palmo a palmo estes territórios - tanto os de corrupção quanto os de venda - e sempre de uma forma violenta. Da mesma forma violenta, sofrerão extorsões, assim como o usuário também as sofre. Assim, nesta guerra interna que a lei permite, todo ano podem ocorrer as dezenas de propagandas sobre "desmantelamentos" das "maiores quadrilhas" do estado ou mesmo do país.. que estas somente darão lugares a outras. A competição entre os grupos e o inevitável papel da corrupção na esfera estatal faz com que muitos estudiosos comparem "os traficantes" de drogas com a hidra da mitologia, de cujas "cabeças eliminadas" sempre nascerão mais duas ou três.

Como muitos estudos apontam, também consideramos urgente a criação de um serviço de inteligência articulado entre os efetivos policiais e esferas do legislativo, enfocando estes canais corruptos do crime organizado. E, igualmente urgente, é elaborar uma política que retire dele sua principal fonte de renda (o comércio de drogas), assim diminuindo drasticamente o seu enorme poder de corrupção e de compra de armamentos - e impossibilitando a manutenção da estrutura já existente. Trata-se de atingir as estruturas destas associações mafiosas, principalmente no que tange às corrupções que as legitimam, e que tanto as transformam neste "problema assustador".

A (grande) parcela da sociedade que teme o crime organizado só o teme porque não consegue identificar, de fato, de onde emanam as suas ameaças. Quando dizemos que a questão pode ser estrutural, é porque sabemos que a queima de um ônibus, ou a apreensão de 50 usuários de cannabis, é muito mais fácil de enxergar (e de vender capas de jornal) do que aquela violência cotidiana causada pela desigualdade social e que tanto atinge os temidos "marginais". Ou, para lembrar melhor a origem deste termo: "aqueles que sempre estiveram à margem".

Este conjunto de ações, em médio prazo, poderiam constituir um modelo de atuação eficaz - e talvez até isto não seja o suficiente. Mas enquanto isso, sabemos que a sociedade está pagando por uma política de "redução de oferta e demanda de drogas" cuja desastrosas consequências a acompanham desde seu surgimento. É difícil aceitar que, diante de todo o seu fracasso histórico, os defensores desta "guerra às drogas" ainda queiram ampliar os mesmos métodos catastróficos de sempre - nos lembrando uma irônica expressão americana: "if the cure doesn't work, give more of the medicine".

Os 155 porto-alegrenses entrevistados na pesquisa sobre segurança urbana estavam corretos ao definir o comércio ilegal de drogas como sendo "uma das causas da violência" - ainda que o senso comum e a mídia coloquem o usuário de drogas como o culpado direto de toda esta arquitetura criminosa; quando na verdade está mais do que claro que as altas margens - e os destinos - deste lucro provém da ilegalidade da venda das drogas tornadas ilícitas, e não da venda em si.


E quem é o usuário de drogas, neste contexto?

O usuário de drogas, este sujeito cuja prática social é milenar, e presente em todas as sociedades, na nossa sociedade cumpre um papel de bode expiatório perfeito. Basta, para isto, observarmos casos como o de nossa manifestação cancelada devido à "má interpretação" de uma palavra, ou vendo ainda esta distorção em demais matérias como a do jornal "Fala Bom Fim" (Número 58, de maio de 2006), onde pode-se ler a inscrição "tráfico" sobre uma foto de policiais que na verdade estavam fazendo apreensão a usuários - e não a traficantes.

A partir de uma má-interpretação de nosso panfleto sobre a marcha, em uma matéria que nos apontava como um grupo de "apologia ao uso de drogas" sem ao menos divulgar o nosso blog (quem acessava por aqui dificilmente acharia motivos para estas alusões), diversos setores da sociedade (além da mídia) criaram um ambiente de pressão sobre as autoridades e aparelhos repressivos. O que era um ato legítimo e democrático, uma manifestação popular sobre políticas de drogas que envolvia tanto usuários quanto não-usuários, transformou-se arbitrariamente em ato criminoso - porque foi interpretado como um ato criminoso. No dia do manifesto cancelado, uma "operação pente-fino" parecia estar dizendo à sociedade: "está tudo sob controle: nada mudou, e estas pessoas continuarão sendo presas".

A pergunta é: até que ponto o usuário está "acendendo" a violência?

Muito mais do que apontar para o eventual despreparo de um ou outro jornalista ou editor, na verdade tudo isso nos demonstra o nível de desinformação e generalização a que chegamos na sociedade, de uma forma ampla - cujas origens já tentamos problematizar, na primeira parte destas reflexões.

É importante lembrar, para aqueles que pensam ser possível e desejável "eliminar" as drogas, que esta condenação não está recaindo sobre todo e qualquer usuário de drogas, mas somente em alguns deles. Em todas as sociedades sempre existiu condenação moral sobre o uso de algumas substâncias e permissão para outras. Hoje em dia muitas drogas são até incentivadas em propagandas como as de cerveja, sem que isso levante condenações morais daqueles que se dizem "contra as drogas". Sem falar no caso de alguns usuários de drogas culturalmente inseridas, como chimarrão e café, que não enxergam o quanto suas práticas, na verdade, não diferem em nada da prática de outros usuários.

Se a intenção é fazer um "combate às drogas", deveria-se antes disso ter consciência do quê são "drogas" e de como este é um conceito cujo sentido sempre mudou, em cada contexto social. Aliás, se existe por parte da "guerra às drogas" uma preocupação com as implicações sociais da questão, nos resta saber porquê é que seus defensores parecem justamente ignorar toda contribuição das ciências humanas.

Como alusão final destas comparações todas, deixamos um último exemplo:

O fato de que algumas drogas são vendidas em farmácias (que não por acaso se chamavam drogarias) também demonstra à sociedade que existe um uso de drogas prescritas e regulamentadas. Drogas (substâncias químicas), psicoativas ou não, que da mesma forma que as ilegais, também podem envolver casos de uso problemático, e também podem causar danos ao organismo de quem usa. Para impedir estes danos, ou para reduzí-los ao máximo, existem bulas, com informações claras, à disposição de todo e qualquer indivíduo que lidar com estas substâncias. As bulas trazem informação sem distinção alguma a quem vai ler - porque por trás disso está o reconhecimento de que, mesmo que esta pessoa esteja fazendo aquilo por conta própria, ela (e os que estão por perto) construirão sua relação com a substância a partir da informação disponível.

Contrariando todos os argumentos nos quais se baseiam os proibicionistas (quando atestam a urgência que há em proibir as drogas tornadas ilícitas), por trás dos dados científicos e dos avisos técnicos das bulas de remédio, está implícito o reconhecimento de que nenhum tipo de lei arbitrária ou fiscalização sobre os indivíduos poderá suplantar o livre-arbítrio destes ao manipularem e ressignificarem o seu próprio corpo, incluindo-se aí as suas concepções de saúde, de prazer, a livre manipulação de sua sexualidade e as substâncias que eles ingerem.

Em último caso, temos o dever de expôr as informações e a realidade ao máximo (reduzindo danos ao máximo), e contribuir para que os controles sociais (já existentes) possam fazer uso desta informação, assim como o fazem com as drogas lícitas.

Devemos adotar, como parâmetro, que jamais foi necessária a criação de toda uma política de drogas na qual a abordagem que fosse feita sobre tais substâncias servisse unicamente à violência - e à ignorância.

Reflexões sobre Drogas e Violência - parte um



Mediação de conflitos e Direitos Humanos


Integrantes do Princípio Ativo participaram, no sábado (20/05), da elaboração de propostas na 1º Conferência Municipal de Segurança Urbana de PoA. O objetivo deste evento foi o de recolher propostas e diretrizes, por parte da comunidade, visando a construção de políticas públicas relacionadas à segurança urbana, violência e temas derivados.

Partindo de alguns temas abordados lá, propomos estas reflexões..

O eixo escolhido pelo grupo foi o de "Políticas de prevenção e enfrentamento da violência e do crime: Mediação de conflitos e Direitos Humanos".

Algumas de nossas propostas se resumiam a trocas de conceitos mesmo, dentro dos textos, como por exemplo mudar a expressão "prevenção e tratamento à drogadição" para "conscientização e prevenção contra o uso abusivo ou indevido de drogas" - afinal, nem todo uso de drogas pressupõe problemas na vida do usuário.

Alguns indagaram: quando se fala nisso, não se estaria afirmando a existência um uso "devido" de drogas? A resposta é não: não se trata de afirmar que drogas devem ser usadas, mas sim de dizer que existem várias maneiras de usar uma substância, afins de reduzir possíveis danos - e a Redução de Danos é uma abordagem na promoção de saúde já consagrada mundialmente.

"Drogadição" é um termo ineficaz para explicar como se aborda uma relação problemática de abuso ou uso indevido. Esta relação requer todo um contexto favorável, onde se criará a expectativa entre o usuário e a substância química. E como nos supõe as bulas dos fármacos (inclusive as dos mais danosos), o organismo de cada pessoa responderá a cada substância de forma diferente. Não há como entender, portanto, certos discursos médicos "antidrogas" que apresentam algumas substâncias como sendo inevitavelmente agressivas a tod@s que com elas cruzarem contato - enquanto que as substâncias que eles prescrevem possuem contra-indicações, efeitos adversos e dosagens reguladas para cada organismo. O contexto do uso é psicológico e social: o "comportamento viciado" não se resume somente à mera ação de substâncias químicas sobre o corpo.

Comprovando a importância destes fatores, existem inúmeros "comportamentos viciados" com práticas que não envolvem a administração de substâncias químicas no organismo - o vício em jogos, por exemplo. A questão a ser prevenida, portanto, não é a mera prática em si (as substâncias químicas ou os jogos), mas principalmente a relação que é construída em torno desta prática por algumas pessoas.

PROERD

Uma das nossas propostas mais importantes na conferência se deu sobre a intenção original, que visava um estabelecimento definitivo do PROERD em Porto Alegre. O PROERD é um programa ultrapassado, importado do modelo americano de "war on drugs", no qual policiais são selecionados para dar "aulas contra o uso de drogas" nas escolas. Coloca-se a temática de uma forma repressiva e nada educativa através de palavras como "guerra" ou "combate", e desrespeitando a inteligência dos adolescentes com frases no estilo "just say no". Com isso, acabam por desinformá-los e desprepará-los para lidar com a realidade das drogas na sociedade, e incentivar opiniões moralistas e estigmatizadoras acerca de drogas e seus usuários, contribuindo para o aumento do preconceito e do tabu, bem como para um desentendimento desta prática social que possui significados muito diversos entre si. Grupos americanos que, como o nosso, contestam tal abordagem, evidenciam esta falha com um bom trocadilho: "just say know!".

Pois como nem todo usuário constrói relações problemáticas, um jovem que tenha passado pelo PROERD, ao encontrar com um usuário não problemático de cannabis, por exemplo, questionará tudo que ouviu, podendo achar inclusive que, já que cannabis não mata (conforme alertaram), é possível que ela "sempre faça bem à saúde". Ou seja, exclui-se a possibilidade de reduzir danos, e mesmo a de informar. Um repressor deixará a saúde em segundo plano, por enxergar no uso um crime.

Propomos uma revisão do PROERD como algo ultrapassado, substituindo-o por equipes multidisciplinares que passassem informações claras e não-repressivas sobre drogas nas escolas (compostas principalmente por trabalhadores da saúde, psicólogos e cientistas sociais, dentre outros profissionais), e assim promovendo a possibilidade de um diálogo franco e aberto sobre o tema.

A construção do temido "mundo das drogas" - e suas portas de entrada...

Outra adaptação do grupo foi acerca de políticas públicas que promovessem eventos culturais nas comunidades onde a venda de drogas é mais presente, visando maior inserção social dos jovens. Projetos como esse são imprescindíveis ao atuar nessa realidade, e bom exemplo disso é o Afroreggae.

A proposta original, no caso, estava escrita da seguinte forma: "criar um sistema de proteção à drogadição de jovens adolescentes, com o objetivo de evitar sua cooptação ao mundo das drogas".

Ora, mas o "mundo das drogas" é o mundo no qual vivemos há milênios.. Se queremos entender e lidar com esta questão, devemos encará-la como real, e não cair no engano de achar que podemos "evitar" entrar em contato com elas - nem que seja para falar sobre o assunto. Neste sentido é que certos argumentos "contra as drogas" acabam soando confusos: como não se consegue extinguir as drogas do mundo, muitos fingem que elas não existem - e mesmo se existem, dá a impressão de que não podemos dialogar com elas, a não ser para repudiá-las, reprimir a sua existência, deixar a realidade das drogas sob uma cortina de fumaça.

E é aqui cabe mais uma reflexão sobre a construção do conceito de "drogas".

Foto de matéria de Zero Hora sobre usuários de cannabis:
"cortina de fumaça" sobre as causas da violência.


Podemos lembrar do conceito de "dispositivo", para o filósofo M. Foucault, quando aplicado à difusão de idéias sobre drogas. Para o pensador francês, certos discursos e saberes, durante o processo no qual ganham um status de reconhecimento (científico, por exemplo), através deste reconhecimento começam a se articular e agir através de outras esferas sociais - e os agentes destas esferas variadas (a grande mídia, por exemplo) irão reproduzir as noções deste discurso.

Tal aproximação é lembrada pelo pesquisador Maurício Fiore (neip -USP), que analisa, por exemplo, o papel da mídia ao abordar o tema "drogas", agindo não só como reprodutora do discurso (cientificamente construído) da "guerra às drogas", como também como incitadora de toda uma forma de se entender a questão do uso de drogas na sociedade. Ou seja, ao mesmo tempo que se reprime a droga, através de conceitos como "combate", "guerra", "morte" e "vício", se cria com isso todo um ambiente de diálogo e percepção sobre o assunto que não têm como não ser "violento" - e "viciado". É de se perguntar até que ponto a instauração de uma abordagem de "guerra" ao assunto está contribuindo para um debate de um tema sobre o qual, geralmente, dizem que não se pode falar por ser "delicado demais"; como uma realidade que é tão horrível que é preferível omití-la - gerando assim tabus, preconceitos e generalizações que em nada contribuem para um melhor entendimento da questão.

Depois que algumas substâncias se tornaram ilícitas, no século passado, o termo "drogas" passou a sofrer alterações de significado, de forma direta e indireta, conscientemente ou não, por parte das pessoas que falam sobre isso.

Quando alguém reprime as drogas ilícitas, não está somente reprimindo-as, mas está também ajudando a construir uma idéia específica sobre "drogas ilícitas" - uma idéia que conferirá características às "drogas" justificando a sua repressão. Por exemplo: "drogas sempre matam", "drogas sempre levam à violência", etc. Em outras palavras, podemos dizer que a repressão necessita da idéia de droga como sendo "uma coisa sempre maligna e sempre perversa".

Esta concepção sobre "drogas" nasce com a proibição, legitimando-se no senso comum e reproduzindo-se tanto através de julgamentos subjetivos e morais quanto nas instituições. Isto nós podemos observar nas restrições e proibições impostas quanto ao interesse de pesquisadores sobre o tema, dentro das próprias universidades; ou na omissão, manipulação ou distorção feitas em determinadas pesquisas científicas sobre drogas.

O exemplo mais clássico dos desdobramentos desta distorção é a teoria da "porta de entrada": para alguns cientistas concluírem que "o uso de cannabis sempre leva ao uso de drogas pesadas" como heroína, ao invés de pesquisarem usuários de cannabis, pesquisaram usuários das drogas mais pesadas... Este método, de pesquisar um fato (ex: uso de heroína) e atribuir um dado isolado (histórico de uso de cannabis) como sendo um fator causal do objeto estudado, além de raso é intelectualmente desonesto. Caso fossem feitas pesquisas com usuários de cannabis, a "teoria" da porta de entrada seria reduzida a dado estatístico insignificante. Redutores de Danos no mundo todo vêm aplicando a cannabis inclusive como "porta de saída" para usuários de drogas pesadas como o crack, conforme terapias de substituição - e segundo estes trabalhadores da saúde elas vêm dando muitos resultados positivos.

Para fazer uma ironia, partindo de um método de pesquisas como o da "porta de entrada", pode-se chegar a conclusões absurdas, como por exemplo a de que "o fator causal das mortes de pessoas é o fato de elas terem nascido" - e a partir daí, defender a proibição da gravidez para reduzir a ocorrência de mortes. Pareceria absurdo demais - e na nossa opinião, as políticas antidrogas são tão absurdas quanto esta possa soar. Por seu fracasso ao reduzir demanda e consumo, e por seu fornecimento de uma lógica perversa na qual morrem muitos cidadãos - incluindo aqueles que a princípio não estariam ligados com uso, venda ou repressão, mas que acabam sendo alvo direto ou indireto desta guerra.

Sobre esta questão da violência, tentamos expôr alguma reflexão na outra parte do texto.

De resto, enquanto não enxergarmos o "outro lado" deste "mundo das drogas", aprendendo a observar a construção arbitrária destes conceitos "aterrorizantes" a partir da abordagem criada após a proibição, não poderemos entender a lógica que envolve a questão. Consideramos uma tarefa de todos os que se preocupam com a questão identificar e isolar os tabus que costumam rondar o tema, sob pena de nos afastarmos cada vez mais de um debate claro sobre uma questão urgente.

Acima de tudo, não se pode ter medo de falar sobre drogas - e o que propomos aqui, enquanto um grupo de estudos e pretenso movimento social, é o simples exercício da troca de idéias.

sábado, maio 20

A matança dos suspeitos

Já que não temos justiça, por que não nos contentar com a vingança?
Os meninos pardos e pobres da periferia estão aí pra isso mesmo.
Para morrer na lista dos suspeitos anônimos.
Para serem executados pela polícia ou pelos traficantes.

Vamos falar sério: alguém acredita que a rebelião do PCC foi controlada pela polícia de São Paulo? Vejamos: as autoridades apresentaram aos cidadãos evidências de que pelo menos uma parte da poderosa quadrilha do crime organizado foi desbaratada? O sigilo dos celulares que organizaram, de dentro das prisões, a onda de atos terroristas no estado de São Paulo, Paraná, Mato Grosso, etc, foi quebrado para revelar os nomes de quem trabalhou para Marcos Camacho, o Marcola, fora da cadeia? Qual foi o plano de inteligência posto em ação para debelar a investida do terror iniciada no último final de semana?
Alguém acredita que “voltamos à normalidade?” Ou se voltamos – pois a vida está mais ou menos com a mesma cara de antes, só um pouco mais envergonhada: de que normalidade se trata?
Uma normalidade vexada: uma vez constatada a rapidez com que os capitalistas selvagens do tráfico de drogas desestabilizaram o cotidiano do estado mais rico do Brasil, não dá mais para esconder o fato de que nossa precária tranqüilidade depende integralmente da tranqüilidade deles. Se os defensores da lei e da ordem não mexerem com seus negócios, eles não mexem conosco. Caso contrário, se seus interesses forem afetados, eles põem para funcionar imediatamente a rede de miseráveis a serviço do tráfico, conectada através de celulares autorizados pelo sistema carcerário (que outra explicação para a falta de bloqueadores e de detectores de metal nos presídios?) e toleradas pelo governador de plantão. No caso, o mesmo governador que, na hora do aperto, rejeitou trabalhar em colaboração com a Polícia Federal e, horas depois, negou ter feito acordos com os líderes do PCC. Segunda feira, nos telejornais, o governador Lembo nos fez recordar a retórica autoritária dos militares: nada a declarar além de “tudo tranqüilo, tudo sob controle”. E quanto aos oitenta mortos (hoje são 115), governador? Ah, aquilo. Bem, aquilo foi um drama, é claro. Lamento muito. Mas pertence ao passado.
A falta de transparência na conduta das autoridades e a desinformação proposital, que ajuda a semear o pânico na população, fazem parte das táticas autoritárias do atual governador de São Paulo. Quanto menos a sociedade souber a respeito da crise que nos afeta diretamente, melhor. Melhor para quem?
Na noite de segunda feira, quando os paulistanos em pânico tentavam voltar mais cedo para casa, vi-me parada ao lado de uma viatura policial, em um dos muitos congestionamentos que bloquearam a cidade. Olhei o homem à minha esquerda e, pela primeira vez na vida, solidarizei-me com um policial. Vi um homem humilde, desprotegido, assustado. Cumprimentou-me com um aceno conformado, como quem diz: fazer o que, não é? Pensei: ele sabe que está participando de uma farsa. Uma farsa que pode lhe custar a vida.
De repente entendi uma parte, pelo menos uma parte, da já habitual truculência da polícia brasileira: eles sabem que arriscam a vida em uma farsa. Não me refiro aos salários de fome que facilitam a corrupção entre bandidos e PMs. Refiro-me ao combate ao crime, à proteção da população, que são a própria razão de ser do trabalho dos policiais. Se até eu, que sou boba, percebi a farsa montada para que a polícia fingisse controlar o terror que se espalhava pela cidade enquanto as autoridades negociavam respeitosamente com Marcolas e Macarrões, imagino a situação do meu companheiro de engarrafamento. Imagino a falta total de sentido do exercício arriscado de sua profissão. Imagino o sentimento de falta de dignidade destes que têm licença para matar os pobres, mas sabem que não podem mexer com os interesses dos ricos, nem mesmo dos que estão trancados em presídios de segurança máxima e restrições mínimas.
Mas é preciso trabalhar, tocar a vida, exercer o trabalho sujo no qual não botam fé nenhuma. É preciso encontrar suspeitos, enfrentá-los a tiros, mostrar alguns cadáveres à sociedade. Satisfazer nossa necessidade de justiça com um teatro de vingança. A esquizofrenia da condição dos policiais militares foi revelada por algumas notícias de jornal: encapuzados como bandidos, executam inocentes sem razão alguma para a seguir, exibindo a farda, fingirem ter chegado a tempo de levar a vítima para o hospital.
Isso é o que alguns PMs fazem na periferia, nos bairros pobres onde também eles moram, onde o desamparo em relação à lei é mais antigo e mais radical do que nas regiões mais centrais da cidade. Nas ruas escuras das periferias os PMs cumprem seu dever de vingança e atiram no entregador de pizza. Atiram no menino que esperava a noiva no ponto de ônibus, ou nos anônimos que conversam desprevenidos, numa esquina qualquer. No motoboy que fugiu assustado – quem mandou fugir? Alguma ele fez... Não percebem – ou percebem? – que o arbítrio e a truculência com que tratam a população pobre contribui para o prestígio dos chefes do crime, que às vezes se oferecem às comunidades como única alternativa de proteção.
Assim a polícia vem “tranqüilizando” a cidade, ao apresentar um número de cadáveres “suspeitos” superior ao número de seus companheiros mortos pelo terrorismo do tráfico. Suspeitos que não terão nem ao menos a sorte do brasileiro Jean Charles, cuja morte será cobrada da polícia inglesa porque dela se espera que não execute sumariamente os cidadãos que aborda, por mais suspeitos que possam parecer. Não é o caso dos meninos daqui; no Brasil ninguém, a não ser os familiares das vítimas, reprova a polícia pelas execuções sumárias de centenas de “suspeitos”. Mas até mesmo os familiares têm medo de denunciar o arbítrio, temendo retaliações.
Aqui, achamos melhor fingir que os suspeitos eram perigosos, e seus assassinatos são condição na nossa segurança. Deixemos o Marcola em paz; ele só está cuidando de seus negócios. Negócios que, se legalizados, deixariam o campo de forças muito mais claro e menos violento (morre muito mais gente inocente na guerra do tráfico do que morreriam de overdose, se as drogas fossem liberadas – disso estou certa). Mas são negócios que, se legalizados, dariam muito menos lucro. O crime é que compensa.
Então ficamos assim: o estado negocia seus interesses com os do Marcola, um homem poderoso, fino, que lê Dante Alighieri e tem muito dinheiro. Deixa em paz os superiores do Marcola que vivem soltos por aí, no Congresso talvez, ou abrigados em algumas secretarias de governo. Deles, pelo menos, a população sabe o que pode e o que não pode esperar. E já que é preciso dar alguma satisfação à sociedade assustada, deixemos a polícia à vontade para matar suspeitos na calada da noite. Os policiais se arriscam tanto, coitados. Ganham tão pouco para servir à sociedade, e podem tão pouco contra os criminosos de verdade. Eles precisam acreditar em alguma coisa; precisam de alguma compensação. Já que não temos justiça, por que não nos contentar com a vingança? Os meninos pardos e pobres da periferia estão aí pra isso mesmo. Para morrer na lista dos suspeitos anônimos. Para serem executados pela polícia ou pelos traficantes. Para se viciarem em crack e se alistar nas fileiras dos soldadinhos do tráfico. Para sustentar nossa ilusão de que os bandidos estão nas favelas e de que do lado de cá, tudo está sob controle.

Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e poeta, é autora do livro "A mínima diferença - o masculino e o feminino na cultura".

quarta-feira, maio 17

Mas alcoolismo não é uma doença?

Os incidentes que culminaram na expulsão do jornalista americano William Rohter, há já algum tempo, devido à matéria publicada no The New York Times, trouxeram inúmeros elementos que podem ser analisados à luz de inúmeras teorias e concepções. Podemos analisar toda a novela por uma ótica construída a partir dos problemas da ética na imprensa, ou a partir das questões da diplomacia internacional, ou ainda com respeito ao universo dos Direitos Humanos, no que tange às questões relacionadas à liberdade de imprensa. Podemos olhar para a reação do governo, entendendo-a como um sintoma dentro de todo um contexto político extremamente complicado para o governo Lula no momento atual. Enfim, tudo isto, e muito mais, é possível. O exercício que vou construir aqui é, portanto, apenas um dos possíveis.
Para quem não lembra, refiro-me ao caso em que o presidente Lula foi acusado por um jornalista norte-americano como um bêbado, alcoólatra. Os escritos reverberaram por alguns dias na imprensa brasileira, e depois caíram no esquecimento. Durante aqueles dias, porém, vários políticos pronunciaram-se sobre o caso, de diferentes formas.
O que me chamou a atenção, principalmente devido à minha condição de trabalhador da saúde que atua diretamente com pessoas usuárias de substância psicoativas, foi o total desconhecimento e preconceito com o qual o problema do alcoolismo foi tratado nas inúmeras declarações feitas por homens públicos nos últimos dias, de todas as matrizes ideológicas, em todas as esferas do poder. Não vou me dedicar à crítica ao infeliz texto do jornalista americano, coberto de inverdades, pois não há nenhum ponto de crítica que eu possa abordar que já não o tenha sido, de forma muito mais eficiente, por inúmeros articulistas em todo o país. Mas me impressiona que, até agora, nenhuma única voz tenha se levantado contra as ofensas e as manifestações de ignorância e preconceito levadas a cabo por pessoas públicas de todo o país, no afã de defender o presidente e de atacar o jornalista.
Dentre as manifestações que se enquadram, houve aquelas que colocaram o uso (ou abuso) do álcool como uma questão de honra. O Ministro do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, disse: “Minha reação é de indignação. Atinge não só à pessoa honrada do presidente Lula, como também à instituição da Presidência da República e a toda a nação brasileira”. Já o vice-presidente José de Alencar disse que “Lula é um homem de bem, e todos nós, brasileiros, temos de nos revoltar. É um desrespeito ao nosso presidente”. O senador Arthur Virgílio, do PSDB, nos brinda com "Não é bom enveredar por este caminho, porque, se formos por aí, eu diria que a política externa dos Estados Unidos é bêbada. Eles promoveram dois Vietnãs em 50 anos”. E finalmente, como não bastasse às declarações feitas oralmente, no calor das discussões e da tribuna, sujeitas, portanto, a deslizes que talvez não possam ser tão duramente criticados, temos a pérola do preconceito em sua versão oficial, qual seja: a nota que acompanhou a decisão de cancelamento do visto do jornalista americano, assinada pelo ministro interino da justiça, Luis Paulo Teles Ferreira Barreto, que diz que tal decisão foi tomada “... em face de reportagem leviana, mentirosa e ofensiva à honra do presidente da República, com grave prejuízo à imagem do país no Exterior”. Todas as declarações aqui citadas foram pinçadas de matérias publicadas no Jornal Zero Hora, entre os dias dez e doze de maio. Tenho certeza de que se minha pesquisa fosse mais profunda, eu teria coletado um número muito maior de peças passíveis de uma análise a partir do escopo do preconceito e do desconhecimento com relação aos problemas relacionados ao uso de álcool.
Podemos ver, por exemplo, que a palavra honra aparece repetidas vezes. Diz Miguel Rosseto que a matéria atinge à “... pessoa honrada do presidente...”. Já na declaração do Ministro Interino da Justiça, vemos que a matéria publicada no The New York Times foi “... ofensiva à honra do presidente...”.
Ora; o que incomodou na matéria não foi o fato de que se afirma que o presidente Lula faz uso de bebidas alcoólicas. Isto moeda corrente, e ninguém, nem mesmo o presidente, faz segredo disto. O que incomodou foi o fato de que a matéria aponta para o fato de que o presidente teria problemas com o álcool. O próprio governo brasileiro, porém, através do Ministério da Saúde, considera o uso abusivo de álcool como um problema de saúde pública. O documento oficial “A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas”, na página dezessete, sob o sub-título “Alcoolismo: o Maior Problema de Saúde Pública”, diz que “... A reafirmação histórica do papel nocivo que o álcool nos oferece deu origem a uma gama extensa de respostas políticas para o enfrentamento dos problemas decorrentes de seu consumo, corroborando assim o fato concreto de que a magnitude da questão é enorme, no contexto da saúde pública mundial”. A própria Organização Mundial de Saúde inclui dentro de sua catalogação oficial o CID F10, caracterizado como “Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool”.
Se concordarmos todos, como o fazem OMS e Ministério da Saúde, sobre o alcoolismo ser um problema de saúde, por que então ligar a suspeita de que o presidente está doente com ataques à sua honra? Uma pessoa doente é uma pessoa sem honra? Ou ainda como pode ser visto na declaração do vice-presidente, que a afirma que “... Lula é um homem de bem...”, dando a entender que se ele ficar doente (ou seja, se vier a desenvolver problemas devido ao uso de álcool), ele deixará de ser uma pessoa de bem.
A pérola maior, no entanto, é a declaração do Senador Arthur Virgílio, dizendo que a política externa americana é “bêbada”, por ter promovido dois Vietnãs em cinqüenta anos. Segundo a declaração do Senador, portanto, podemos concluir que os alcoolistas são “bêbados” e intrinsecamente violentos. É isto ou estou enganado?
Não acredito que o Presidente Lula seja um alcoolista. Acredito, sim, que a matéria teve a clara intenção de desestabilizar o governo. O governo, por sua vez, ao agir com truculência, perdeu uma grande oportunidade de usufruir um dos raros momentos em que gozou, nos últimos tempos, de um apoio unânime no cenário político nacional e internacional, haja visto todas as declarações posteriores à publicação da matéria no The New York Times ofereceram apoio e solidariedade total ao presidente. Clara demonstração de inabilidade política. Para usar o jargão popular, “perdeu-se uma boa chance de se ficar calado”.
Não obstante, para nós que trabalhamos de uma forma ou de outra com a pessoa usuária de álcool e outras drogas, este momento foi extremamente rico, oferecendo uma boa oportunidade de sabermos exatamente quais as idéias que povoam o imaginário político nacional a respeito deste grave problema de saúde publica. Só para constar, é importante que se diga que de tudo o que se gasta com saúde mental no Brasil, sessenta por cento é consumido no tratamento de pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas. Desses sessenta por cento, mais de oitenta dizem respeito exclusivamente a problemas relacionados ao álcool. Não obstante este fato, o preconceito e a ignorância com relação a estes problemas ainda são imensos. Em depender das declarações de nossos homens públicos, estamos investindo estes recursos públicos na recuperação e tratamento de pessoas imorais e desonradas. Como Vinícius de Moraes ou Lima Barreto, por exemplo.

quinta-feira, maio 11

Sobre um domingo no parque, uma manifestação cancelada e mais de 50 jovens presos

Talvez a cidade não tenha se dado conta, mas no domingo passado, dia 7 de maio, um episódio significativo e paradigmático da nossa vida social e cultural se desenrolou no Parque da Redenção, em Porto Alegre. Nessa data seria realizada, se não tivesse sido, três dias antes, cancelada, a primeira edição na cidade da Marcha Mundial da Maconha e por uma nova política de drogas. As razões do cancelamento já foram anteriormente bem expressas pelo coletivo Princípio Ativo, organizador da manifestação, e não serão aqui muito aprofundadas. Basta dizer que, diante da irresponsabilidade da imprensa, ao criar um clima de confronto em potencial para a manifestação, e diante da preparação, por parte dos órgãos de segurança pública, de uma “operação especial” para reprimir qualquer ato que pudesse ser interpretado como ilícito (e aí se inclui desde o consumo de substâncias até um cartaz que fosse visto como apologia), os organizadores julgaram por bem cancelar o ato. Porto Alegre estava se mostrando incapaz de convivência democrática entre as diferentes posições políticas acerca de um tema tão delicado e gerador de tanto sofrimento como é a questão das drogas. Mas o pior ainda estava por vir: no dia 7, mesmo com o cancelamento da manifestação, tendo em vista a preservação da integridade e da segurança de manifestantes e freqüentadores do Parque da Redenção, a polícia realizou uma “operação padrão”. Policiais à paisana circulavam pelo parque a fim de flagrar jovens que estivessem fumando ou portando maconha, atividade que, no entender de muitos, constitui um grave delito e um sério dano à segurança social. Notório local de uso de drogas, a Redenção foi esquadrinhada e mais de 50 pessoas, em sua imensa maioria jovens, foram detidas. Punição exemplar? No nosso entendimento, espetáculo patético. Exibição pública de uma lei medieval.

Essa intervenção do Estado na vida desses jovens provavelmente causou-lhes muito mais danos do que todos os baseados que eles pudessem fumar ao longo do domingo no parque. E, ademais, tal ação não representa absolutamente nada diante do problema social que se liga ao uso de drogas, problema este que se refere muito mais aos danos que essa legislação causa à sociedade do que aos danos que as próprias substâncias causam. Nunca é demais lembrar que, hoje, no Brasil, morre-se muito mais devido à guerra às drogas (conflitos entre traficantes e destes com a polícia) do que devido ao uso dessas substâncias. Isto posto, a pergunta é: se após décadas dessa receita o que tivemos foi aumento do consumo de drogas e da violência urbana, por que insistir em operações como essa? Será para “mostrar serviço” à sociedade, que se encontra paralisada e aterrorizada diante da situação e, tal qual avestruz, enfia a cabeça na areia pra não enxergar que é ela mesma a causa dos seus maiores pesadelos? É o preconceito e o moralismo que impedem as pessoas de pensarem e reivindicarem uma nova política de drogas, realmente capaz de reduzir os danos tanto aos usuários quanto à sociedade, que sofre não só com o problema das drogas, mas, principalmente, com o problema da proibição das drogas. Operações como essa, que prendem mais de 50 jovens, por condutas absolutamente inofensivas, mobilizam dezenas de agentes e envolvem altos custos ao Estado. E que retorno a sociedade tem? Pergunta-se: no que essa operação adiantou para melhorar a situação? Deter mais de 50 jovens por horas na delegacia, submetê-los à lamentável experiência de serem algemados e espremidos no posto policial e, depois, levados de camburão à delegacia para assinarem um papel e serem, após o devido terror, liberados. Para isto a sociedade está pagando impostos escorchantes?

A questão das drogas ultrapassa, em muito, essa dimensão policialesca. O uso de drogas é, talvez, a prática social mais antiga de que se tem notícia e não é porque uma determinada sociedade, uma cultura particular, decidiu fazer da criminalização dessa atividade um dogma que tal prática vai ser abandonada ou mesmo perder o sentido que seus praticantes lhe conferem, sentido este que em muito se distancia da idéia de um “crime”.

Episódios como esse nos dão o que pensar. O que aconteceu no Parque da Redenção no último domingo foi um rito autoritário e ritos autoritários sempre indicam a presença de situações conflitivas. A sociedade brasileira parece avessa ao conflito, mas isso, de forma alguma, o elimina. Ao contrário, em sociedades como a nossa, de passado colonial, de presente dependente e posição periférica, crises e conflitos estão sempre acontecendo. No entanto, temos a tendência de negar, de não reconhecer as situações de conflito. Em outras sociedades, crises como esta, surgidas a partir da vontade de um grupo em realizar uma prática e a vontade de um outro grupo em proibir e impedir tal prática, são resolvidas a partir do seu reconhecimento como parte da vida política e social e da construção de alternativas ao impasse conflitivo. Aqui, entre nós, a crise não chega sequer a ser admitida. Em outros países, quando esse problema em torno do uso de drogas se colocou de maneira forte, a crise que daí adveio indicou algo a ser corrigido. Produziram-se então leis de descriminalização do usuário e, em alguns países, regulamentação das relações de produção, distribuição e consumo de drogas. Já no Brasil, parece que a tradição é conceber qualquer crise como um presságio do fim do mundo, como uma ameaça estrutural à moral e aos bons costumes, “ao nosso modo de viver”. O que fazemos então? Nós fingimos que a crise não existe e falamos em outra coisa, enquanto o pessoal da segurança remove o incômodo pra delegacia. Olhamos pro outro lado e ignoramos a possibilidade de encarar de forma madura e responsável os nossos problemas.

Precisamos rediscutir a nossa política de drogas, sob pena de gerarmos um monstro tal que não poderemos mais com ele lidar. Se o uso de drogas é um problema, as conseqüências da proibição desse uso são um problema ainda maior, pois, além de não evitar o consumo (ou alguém acha que algum desses jovens vai deixar de fazer o que estava fazendo no último domingo?), ainda propicia as condições para uma guerra civil em meio a nossa hipocrisia. Está morrendo muita gente, principalmente nas periferias, devido à guerra às drogas. Pessoas que, sem melhores perspectivas de vida, acabam, pouco a pouco, enveredando para o comércio ilícito de drogas. Acaso essas vidas valem menos do que as nossas? Deve o Estado virar as costas para esse problema?

Acreditamos que o melhor a fazer é, primeiramente, controlar a situação por meio da regulamentação da produção, da distribuição e do consumo de drogas. Precisamos saber e determinar quem vende, quem compra, onde, quanto e o quê. Precisamos saber pra onde esse dinheiro vai (e deve ir para programas de informação e educação para prevenção, bem como para o tratamento de dependentes químicos). Essas são estratégias muito mais capazes de redução de consumo e de danos sociais do que simplesmente investir dinheiro público em prisões de adolescentes. O recado que a sociedade dá a esses jovens, ao prendê-los, é: vocês são criminosos, comportem-se como tais. Estamos criando identidades e convidando adolescentes à revolta. Quantos deles não estão usando drogas justamente como sintoma de sua revolta e de sua inadequação em meio a nossa sociedade hipócrita, autoritária, individualista?

O rito autoritário que ocorreu no dia 7 de maio em Porto Alegre revela traços sérios da nossa vida social. Revela, primeiramente, que há um conflito no seio da nossa sociedade e que nós não estamos sabendo como solucioná-lo. Pior, não estamos nem ao menos reconhecendo a sua existência, já que chamamos crime uma prática social milenar e, com relação aos nossos jovens, nós os ameaçamos e encarceramos por ousarem ser críticos a esse absurdo. Não queremos admitir o conflito porque sabemos que conflitos abertos são marcados pela representatividade de opiniões e que nessas situações não há como deixar de ouvir todos os lados envolvidos. É isso justamente o que não queremos, pois essa igualdade de condições para expor argumentos e pontos de vista se choca frontalmente com o esqueleto hierarquizante da nossa sociedade.

Essa perseguição inquisitorial aos usuários de drogas denuncia em níveis cotidianos nossa ojeriza à discórdia e à crise, revelando nossa preocupação em manter cada qual no seu lugar da hierarquia, o que fazemos com autoridade. Num mundo como o nosso, que tem de se mover obedecendo às engrenagens de uma hierarquia que deve ser vista como algo natural (“é natural que usuários de drogas sejam estigmatizados e desconsiderados em seus anseios e pontos de vista”), os conflitos tendem a ser tomados como irregularidades. Mas não é assim. O conflito gerado pelo uso de drogas não é uma irregularidade. É uma demanda de parcela expressiva da sociedade que afirma não estar satisfeita com a forma como outra parcela tem gerido os problemas. É difícil para essas pessoas entender como e por que a cervejinha e o uisquinho no final do dia são legítimos, mas a canábis não. Não há critério científico nessa distinção, tampouco justificação lógica. Incoerências como essa, no interior de um sistema social, é o que alguns cientistas sociais chamam de injustiça.

Temos de ver nesse conflito um sintoma de crise no nosso sistema e não mais uma revolta que deve e precisa ser reprimida. Aqueles que estamos encarcerando são estudantes, professores, médicos, advogados, engenheiros, cidadãos como nós, que pagam seus impostos justamente para que o Estado lhes resguarde o direito de fazer o que bem entenderem com seus próprios corpos, desde que não prejudiquem os outros. Lesar a si mesmo não constitui crime. Em teoria. Na prática, no Brasil, nenhuma teoria se aplica. Esse conflito em torno do uso de drogas é uma crise no nosso sistema e, diante de crises, nosso esforço deve ser no sentido de modificar toda a teia de relações implicadas na estrutura, ou seja, mediar e resolver o conflito (Áreas próprias para consumo de drogas? Vendedores autorizados? Um código de regulamentação que prescreva direitos e deveres do usuário? Discutamos abertamente tais assuntos). Ao tratarmos um anseio legítimo de uma grande parcela da população como atos de revolta, o que fazemos é circunscrever o conflito e fingir tê-lo resolvido com algumas prisões aqui, umas apreensões acolá... Mas a tensão só aumenta. O fosso e a incomunicabilidade só crescem. E, com eles, a violência que nos apavora e paralisa. Fecha-se, novamente, o ciclo e o avestruz se esconde debaixo da areia pra não encarar suas responsabilidades. Nossas responsabilidades.

Não encaramos o conflito como crise e acabamos por pessoalizá-lo. Então o grande vilão é o usuário. Depois, é o traficante. Às vezes, para outros, é o policial. Ou a corrupção. Ou os políticos. Sempre no particular, mas nunca vislumbrando a estrutura, esta sim, que urge ser modificada se ainda queremos sonhar com paz e justiça social. É assim que agimos quando tomamos conflitos como esse nunca como atualizações de valores e princípios estruturais da nossa sociedade, mas sempre como a manifestação de traços pessoais indesejáveis. Assim, apontamos sempre para alguém que é culpado e nos eximimos de apontar para nós todos, enquanto sociedade, como causadores dos conflitos que tanto nos assustam e indignam.

Todos sabemos que o uso de drogas está em crescimento e se espalha por todos os estratos sociais. Todos sabemos que essa prática de usar drogas existe em todos os tempos e todas as sociedades humanas. Todos sabemos que a proibição é um produto do século XX e que, depois dela, o uso de drogas tornou-se um sério problema social. Conhecemos tudo isso, mas insistimos em não reconhecer, para não resolver, nossos problemas. Não há mais como solucionar esse conflito com violência e repressão. É preciso um acordo, um pacto, uma aproximação entre as partes, que já não mais se comunicam, apenas se agridem. Negar e reprimir não são parte da solução, pois foram elementos centrais na constituição do problema. Quando uma regra passa a ser um problema, quando um costume desejado e praticado por muitas pessoas no interior de uma sociedade passa a ser perseguido e tenta-se extirpá-lo é preciso rever certos dogmas, sob pena de os conflitos se ampliarem até o insuportável. As leis não podem vir de cima para baixo, elas devem ser produto das práticas sociais de um povo. Sem a disposição política de obediência não há lei que se sustente. Nem a cacetadas.

O que temos no Brasil é uma regra que proíbe e reprime o uso de algumas drogas, mas uma prática geral de incentivo ao uso de outras drogas. Apologia ao uso de drogas é o que vemos diariamente na televisão, nos comerciais de cerveja. E por mais que o consumo de álcool esteja envolvido em diversos conflitos na nossa sociedade, o furor quem causa não é ele, mas a canábis, a plantinha “do mal”. E ainda há quem duvide do poder simbólico...

terça-feira, maio 9

Discutindo políticas de drogas: as atuais políticas estão funcionando?

Sempre que se fala no tema “drogas”, logo vêm à tona discursos inflamados, invariavelmente centrados nesta ou naquela propriedade desta ou daquela substância. Rapidamente a discussão perde o foco, perdendo-se, também, a possibilidade de aprofundamento em um tema talvez ainda mais importante: políticas de drogas.

Falar em políticas de drogas não é falar sobre as drogas em si, seus efeitos, seus modos e contextos de uso. Não se trata, pois, de falar sobre os malefícios que o uso de drogas pode causar e nem de falar sobre se, idealmente, sonhamos com uma sociedade onde ninguém faça uso de substâncias psicoativas ou, ao contrário, se achamos que algumas drogas nos oferecem possibilidades de benefícios e não apenas malefícios. É claro que tais enfoques são, também, muito importantes e devem ser levados em conta. No entanto, parece que eles já têm seu espaço garantido e que a sociedade, em grande parte, já tomou consciência desses debates. O que falta é que esta mesma sociedade assuma um papel crítico e protagonize a discussão sobre que tipo de políticas devem ser empregadas na abordagem da questão complexa do uso de drogas. Ou seja, trata-se, aqui, a partir de uma leitura do que a realidade nos indica, de pensarmos acerca das formas pelas quais o Estado deve se envolver nessa questão.

Inicialmente, é preciso partir, nessa discussão, do fato incontestável de que seres humanos sempre usaram, continuam a usar e, tudo indica, futuramente também continuarão a fazer uso de uma vasta gama de substâncias que, muito diferentes entre si, guardam em comum a capacidade de agir sobre nosso organismo. Isto posto, trata-se de pensar sobre como o Estado deve se colocar, diante dessa realidade, no sentido de cumprir com sua razão de ser, ou seja, como ele deve agir para preservar, ao máximo, o bem comum.

As drogas que hoje conhecemos como de uso ilícito foram proibidas na primeira metade do século XX. A justificativa dessa medida foi a preservação da saúde das pessoas. Esperava-se, com a aplicação de penas àqueles que fizessem uso ou comerciassem essas substâncias, reduzir o seu consumo e, conseqüentemente, os danos às pessoas e à sociedade. Mais de meio século depois, nos confrontamos com a paradoxal situação de ver o consumo dessas drogas atingir níveis inimagináveis quando de sua proscrição, de modo que nos é lícito afirmar que nunca se usou tantas drogas quanto após a proibição. Mas os problemas e os paradoxos não param por aí. Com o aumento da demanda e a proibição da constituição de um mercado legal, no seio de uma sociedade capitalista, formou-se uma rede de comércio ilícito desses produtos, de modo a garantir sua chegada aos consumidores. Essa rede, operando sem qualquer forma de controle por parte do Estado, passou a regulamentar suas atividades por conta própria, dando origem a um processo de violência crescente nas grandes cidades brasileiras: na ausência de regulação oficial, partiu-se para a lei da selva, problema que foi agravado pela entrada das forças de segurança oficiais nesse combate, na inútil tentativa de impedir, pela via repressiva, que alguém que quer vender algo e alguém que quer comprar esse algo fizessem o negócio. Violência, como sempre acontece, gerou mais violência e o resultado disso está nos jornais, na televisão e no contundente recado do rapper MV Bill: milhares de mortes, absolutamente desnecessárias, de jovens sem qualquer perspectiva ou amparo de uma sociedade que lhes virou as costas. Milhares de mortes, é bom que se diga, ligadas diretamente à violência do tráfico e da repressão policial e não ao uso daquelas drogas que, lá no começo do século XX, foram proibidas para evitar mortes desnecessárias entre os nossos jovens. E aqui chegamos, novamente, ao ponto de partida: políticas de drogas.

O objetivo de uma política pública é o bem público, mas a atual política de drogas causou danos maiores do que os que haviam antes de sua implementação. Se as drogas são perigosas e capazes de arruinar vidas (e são), as conseqüências, aqui enunciadas, de sua proibição, têm arruinado muito mais vidas, destruído muito mais sonhos e produzido muito mais danos à sociedade. A violência saiu dos guetos e nos olha a todos na cara. Nos intimida e paralisa. É preciso reconhecer o fracasso da proibição e da repressão ao uso de drogas. Além de todo esse quadro de violência absurda, a criminalização dessas condutas afasta dos profissionais de saúde os usuários que se tornaram dependentes, ampliando em muito os danos que as drogas, por si só, já causam. E isso sem falar no desperdício de dinheiro público que é a manutenção das estratégias repressivas, enquanto faltam recursos para tratamento digno e de qualidade aos dependentes (é bom lembrar, sempre, que a repressão, além de ineficaz, é muito mais dispendiosa do que a prevenção).

Por tudo isso, e por inúmeras outras razões, faz-se necessário engolir os preconceitos e assumir a discussão de uma nova política de drogas, que seja efetivamente capaz de reduzir o consumo através de abordagens educativas e preventivas, evitando todos os danos que a proibição e a repressão causam. Não se trata de liberar indiscriminadamente a venda e o uso dessas substâncias, mas de regulamentar suas relações de produção, distribuição e consumo, de modo que seja possível determinar exatamente quem vende, quem compra, onde, em que quantidade, quais produtos e, é claro, para onde vai o dinheiro movimentado nesse comércio. É possível a construção de um modelo menos nocivo do que o atual. É possível reduzir a violência, controlar o consumo de drogas, arrecadar fundos para educação e prevenção e diminuir a corrupção que os recursos do tráfico engendram no poder público. A aplicação de uma nova política de drogas, com essas diretrizes, em conjunto com projetos de distribuição de renda e geração de oportunidades é capaz, se não de construir aquela sociedade dos nossos sonhos, ao menos de reduzir, em muito, os danos causados por décadas de políticas equivocadas.

sábado, maio 6

Porque a Marcha Por uma Nova Política de Drogas foi cancelada


Como vencer o oceano
Se é livre a navegação
Mas proibido fazer barcos?

Rola mundo – Carlos Drummond de Andrade


Durante a organização e a divulgação da Marcha Mundial da Maconha e Por Uma Nova Política de Drogas, que estava marcada para domingo, 7 de maio, na Redenção, o coletivo Princípio Ativo entrou em contato com diversos veículos de comunicação, a fim de informá-los corretamente acerca da natureza do ato que vinha organizando. No entanto, a veiculação de informações que não condiziam com os reais propósitos do Princípio Ativo produziu na cidade um clima de tensão e confronto completamente incompatível com os reais objetivos do Princípio Ativo.
O anúncio da manifestação como um “ato de apoio à maconha” disparou um processo de alarme pelos mais diversos setores da sociedade. Discursos sobressaltados e completamente em desacordo com todo o trabalho prévio de divulgação realizado pelo grupo se disseminaram e chegaram aos órgãos de segurança que, pressionados, se preparavam para a repressão de qualquer ato de consumo de drogas ou que pudesse ser considerado apologia às drogas (atos que, após a divulgação completamente descabida de um “apoio às drogas” por parte dos organizadores da marcha, se tornaram possibilidades concretas e praticamente inevitáveis).
Diante da total impossibilidade de garantir a segurança e a integridade física dos participantes da marcha, bem como de evitar prisões e episódios de violência em pleno Parque da Redenção, e tendo em vista a perda completa do caráter pacífico originalmente pensado para a manifestação, como fora divulgado nos panfletos, o coletivo Princípio Ativo julgou por bem cancelá-la.
Consideramos lamentável que, em uma sociedade que se diz e se pretende democrática, a questão das drogas não possa ser tratada sob outra perspectiva que não a criminalizante, proibitiva e repressora. Lamentamos que, diante do fracasso da atual política de drogas, não se possa tentar ou mesmo comunicar outras alternativas existentes para a abordagem da questão sem que se enfrente uma série de preconceitos, intimidações e distorções. Lamentamos a permanência de uma lei completamente absurda, que visa impedir qualquer forma de questionamento e livre debate sobre o problema das drogas, em busca de soluções mais eficientes do que as até agora tentadas. A lei de apologia é uma peça totalitária que sobrevive em meio a um Estado, em tese, democrático, e que se funda em critérios subjetivos. O real objetivo dessa lei é o impedimento do debate por meio da supressão da argumentação antiproibicionista. Não querem que as pessoas saibam que a regulamentação das relações de produção, distribuição e consumo de drogas pode trazer benefícios à sociedade, como a diminuição da criminalidade, o controle sobre o capital gerado por esse comércio, a capacidade de investimentos maiores na prevenção e no tratamento, a produção de informação de qualidade sobre drogas e a diminuição da corrupção. A lei de apologia, desse modo, funciona como uma censura a todos aqueles que desejam apontar para outros caminhos, mais condizentes com a realidade social e cultural do nosso país.
O coletivo Princípio Ativo reitera que não se constituiu para a promoção de atos de desobediência civil e tampouco aprova qualquer atitude violenta ou ilícita. O despreparo mostrado por diversos setores da sociedade, que não sabem como lidar com esse assunto, deixou clara, contudo, a necessidade e a urgência de aprofundamento da reflexão e do debate.
Por outro lado, conseguimos, com isso tudo, fazer com que esferas que se mostravam até então refratárias a esta discussão e que tão somente reproduziam o ponto de vista que fundamenta a atual política de drogas, cedessem espaço a outra forma de pensar o problema. Acreditamos que a manutenção da marcha e sua efetiva realização no dia 7 (com todos os conflitos que, tudo levava a crer, ocorreriam) teria produzido um fechamento ainda maior dessas esferas a qualquer ponto de vista crítico à proibição e à repressão ao uso de drogas.
Algumas portas foram, com muito esforço, abertas. Para que elas se mantenham assim cabe a todos os interessados na discussão e construção de uma nova política de drogas se unirem para a consolidação e ampliação desses espaços. O coletivo Princípio Ativo está apenas iniciando o seu percurso e anunciará, em breve, novas atividades. Está também aberto a toda forma de debate ou discussão sobre políticas de drogas, acerca das quais sustenta com firmeza a sua convicção quanto ao fracasso da proibição: ela é responsável por muito mais mortes do que o uso de drogas.



Coletivo Princípio Ativo – por uma nova política de drogas

www.principio-ativo.blogspot.com
principioativo.rs@gmail.com




É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

A flor e a náusea – Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, maio 3

princípio ativo no programa polêmica - rádio gaúcha

amigos,

amanhã o princípio ativo estará no programa polêmica, representado pelo colega dênis petuco. esse é um programa de debates da rádio gaúcha que vai ao ar das 9 e meia da manhã até as 11 horas e é acompanhado de uma pesquisa interativa com votação por telefone.
a pergunta de amanhã é "marcha mundial da maconha e por uma nova política de drogas: manifestação democrática ou apologia às drogas?"

os telefones para votação são:

sim: (51) 3299-2601
não: (51) 3299-2602

NÃO DEIXE DE VOTAR. CONVIDE SEUS AMIGOS PARA VOTAREM TAMBÉM. ESSA TAMBÉM PODE SER UMA VITÓRIA NOSSA.

segunda-feira, maio 1

Carta de Porto Alegre por uma Nova Política de Drogas

A proibição da venda e do consumo de algumas substâncias psicotrópicas é uma realidade produzida na primeira metade do século XX, trazendo consigo a promessa de um mundo mais saudável e menos violento. A esperança era que, gradativamente, pessoas abandonassem seus hábitos de consumo de drogas por medo da repressão legal. Passados mais de 50 anos de guerra às drogas, faz-se necessário um sério balanço dos resultados obtidos por esta estratégia política.

Pensando na realidade brasileira, o consumo das drogas tornadas ilícitas não só não foi reduzido após décadas de proibição, como aumentou vertiginosamente. A omissão do Estado na regulamentação desse mercado abriu espaço para a constituição de redes ilegais de distribuição e comércio: daí a origem de grande parte da violência urbana que cresce cada vez mais nas principais cidades do Brasil. Essa violência, portanto, não se origina do uso de substâncias psicoativas, mas fundamentalmente das disputas internas do tráfico e dos conflitos gerados pelas tentativas de repressão policial a esse comércio. Assim, a mesma legislação que se apresentava como capaz de garantir paz e saúde à sociedade acabou contribuindo decisivamente para o surgimento de um problema social muito maior do que o uso de drogas, evidenciando o seu fracasso enquanto estratégia política: o número de mortes causadas pela violência do tráfico e pela ação repressiva policial supera, em muito, o número de mortes causadas diretamente pelo uso de drogas.

A proibição do uso de algumas substâncias, que contrasta com a permissividade excessiva relacionada a outras (notadamente, o álcool), constitui, além do mais, um ato de afronta às mais elementares liberdades individuais, em especial àquelas que se referem ao livre uso do corpo e dos prazeres. Ao mesmo tempo, funciona como uma triste estratégia de controle de populações marginalizadas: com a desculpa do combate às drogas, diariamente se cometem atentados aos direitos humanos e à cidadania, principalmente nas comunidades mais pobres.

No âmbito da saúde, os discursos proibicionistas baseiam-se em argumentos que dizem da necessidade de se proteger os jovens do flagelo das drogas. Tais dinâmicas não só não são eficientes no controle da venda e do uso de drogas, como se contradizem ao gerar uma série de “efeitos colaterais”. Além dos problemas eventualmente gerados pelo próprio uso inapropriado e abusivo de drogas, há ainda aqueles que decorrem da proibição, como a dificuldade na construção de vínculos de confiança entre os trabalhadores de saúde e os usuários de drogas, além de todo um conjunto de vulnerabilidades decorrentes da exclusão social, ampliada pela criminalização de uma prática social. Deste modo, doenças como tuberculose, hepatites e Aids aumentam entre estas pessoas, que têm sua aproximação com os serviços públicos de saúde dificultada pelo preconceito e pela estigmatização. Apesar, portanto, do discurso de preocupação com a saúde dos jovens, o que a atual política de drogas faz é prejudicar e exterminar muito mais jovens do que faz o próprio “problema” a que ela se pretende solução.

Por isso tudo se faz urgente a construção de uma nova política de drogas. Substâncias psicoativas são usadas pela humanidade há milhares de anos, e não existem relatos históricos de profundos problemas ou crises sociais gerados por esses usos. Atualmente, milhões de pessoas ao redor do mundo utilizam alguma substância tornada ilícita, e não há razão alguma para crer que a manutenção da estratégia proibicionista seja capaz de reduzir esse consumo. Isso sem falar nas altas somas de dinheiro público gastas anualmente no financiamento de uma repressão completamente ineficaz e multiplicadora de conflitos e danos sociais. Acreditamos que, desde que o uso de algumas substâncias psicoativas foi proscrito, constituíram-se problemas, conflitos e danos sociais muito mais graves e profundos do que aqueles atribuíveis direta e unicamente ao uso dessas drogas. A condenação moral a condutas pessoais e práticas sociais constituiu a base de ações legislativas de caráter repressivo que estão diretamente relacionadas a crises e abalos profundos em nossas relações sociais: o aumento da violência urbana, a estigmatização e o preconceito em relação a usuários e vendedores de drogas, a dificuldade de implementação e manutenção de programas de saúde adequados a essa população, a superlotação carcerária, além de uma série de conseqüências, mais ou menos graves, que podem ser apontadas como diretamente ligadas à criminalização dessas condutas e práticas. A soma dessa política equivocada com um quadro de séculos de exclusão social e péssima distribuição de renda constitui uma verdadeira bomba-relógio, uma ameaça séria à sociedade como um todo, colocando em risco até mesmo o Estado Democrático de Direito.

Exortamos a sociedade civil organizada para que levante suas vozes, fazendo claro seu manifesto de repúdio à forma irresponsável e inconseqüente com que os gestores públicos têm conduzido essa questão. Este documento representa a insatisfação de diversos setores sociais com relação às ações estatais no que se refere à política de drogas atualmente vigente, bem como o indicativo de um caminho diverso. Tal caminho - o da regulamentação das relações de produção, distribuição e consumo dos psicoativos tornados ilícitos - apresenta melhores condições para diminuição do consumo ou redução dos danos e riscos decorrentes do uso de drogas, atendimento àqueles dentre os usuários que se tornam dependentes e que solicitam auxílio, redução da violência urbana e respeito à individualidade, aos direitos humanos e aos diversos modos de ser e estar no mundo.

Este é, fundamentalmente, um manifesto de repúdio à política de drogas vigente e de chamamento à participação e à construção de uma nova forma de se pensar e de se agir em relação à questão das drogas: uma forma baseada no respeito, na liberdade, nos direitos humanos e na convicção da possibilidade e da riqueza da coexistência entre as diferenças.

Assinam este documento os seguintes grupos, organizações ou entidades:

Coletivo Princípio Ativo – por uma nova política de drogas (RS)
ARD'PoA - Associação de Redutores de Danos de Porto Alegre
DCE Unisinos (RS)
DCE UFRGS (RS)
DCE PUC – Zona Norte (RS)
RUDE - Rede de Usuários de Drogas do Estado do Rio Grande do Sul
ABORDA - Associação Brasileira de Redução de Danos
NEIP - Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (SP)
Diadorim - Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade da Universidade do Estado da Bahia
Centro de Extensión Comunitaria Yungay - Universidad Bolivariana - Santiago de Chile

Núcleo de Pesquisa em Mídia e Semiótica - Pós Graduação em Comunicação/Universidade de Marília (SP)
NEP - Núcleo de Estudos da Prostituição de Porto Alegre
Programa de Redução de Danos do Acre
REDUC - Rede Brasileira de Redução de Danos
Rede Acreana de Redução de Danos
Rede Paranaense de Redução de Danos
Revista Cañamo (Chile)
Grup Igia (Espanha)
AMAR – Associação de Mulheres Acreanas Revolucionárias
S.I.M. - Sistema de Informação Melhorada (RS)
Programa Integrado de Marginalidade (RJ)
Associação Carioca de Redução de Danos
Associação Ipê Rosa (GO)
Psicotropicus (RJ)
Centro de Assessoria ao Adolescente de Santa Catarina
Centro de Assessoria ao Adolescente do Ceará
Articulação Nacional de Educação Popular e Saúde / Porto Alegre
Nuances – Grupo pela livre orientação sexual (RS)
Igualdade – Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul

ACARD - Associação Capixaba de Redução de Danos
Associação de Usuárias/os de Álcool e Outras Drogas de Pernambuco
Rede Pernambucana de Redução de Danos

Movimento Plante Legal (SP)
Centro de Convivência É de Lei (SP)
Outra Visão - Grupo GLBT - Porto Alegre-RS
Programa Municipal de DST/AIDS - Corumbá (MS)

Se o seu grupo, organização ou entidade deseja também assinar a Carta de Porto Alegre por uma Nova Política de Drogas, entre em contato através do e-mail principioativo.rs@gmail.com

Este documento está disponível também em www.rolim.com.br

Excertos de artigo da ex-juíza auditora da Justiça Militar Federal Maria Lúcia Karam

“A Constituição Federal de 1988 introduziu um preâmbulo, para afirmar, expressamente, que a Assembléia Nacional Constituinte se reunia para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Logo no artigo 1º da Carta, em seu inciso III, a dignidade da pessoa humana é declarada um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Vem, então, o artigo 5º, que começa por afirmar a inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, para, em seguida, detalhar os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. Dentre suas regras, encontra-se a do inciso X, em que é proclamada a inviolabilidade da intimidade e da vida privada.Tais dispositivos constitucionais, fazendo atuar os fundamentos do Estado Democrático de Direito, reafirmam a conclusão de que condutas privadas, em que ausente a concreta afetação de um bem jurídico de terceiros, não podem ser objeto de intervenção do Estado sobre o indivíduo que as realiza. Condutas com esta natureza privada – como são a posse para uso pessoal de drogas qualificadas de ilícitas ou seu consumo em circunstâncias que não ultrapassem o âmbito individual – , não importando quais sejam suas motivações, não podem, assim, ser objeto de criminalização, mesmo que venha esta disfarçada sob a forma de ilícito administrativo.Especialmente, quando assegura, de forma expressa, os direitos concernentes à intimidade e a vida privada, a Constituição Federal brasileira desautoriza, por ser com ela incompatível, a aplicação do dispositivo incriminador, contido no artigo 16 da Lei nº 6.368/76, como também estará a desautorizar a aplicação de outros dispositivos incriminadores, explícitos ou disfarçados, que venham a ser propostos, na linha do que sugerido no projeto de lei nº 1.873/91 (nº 105/96 no Senado Federal), objeto do veto do Presidente da República. Sempre se deve lembrar que qualquer dispositivo de lei infraconstitucional só é válido quando estiver em harmonia com a lei maior, que é a Constituição”.

"Épocas de desequilíbrio econômico e social, como o atual momento histórico que se convencionou chamar de pós-modernidade, trazem maior punição e maior repressão - e não necessariamente, como se costuma imaginar e divulgar, um aumento na quantidade de crimes.São épocas em que se faz mais necessária a demonstração do terror oficial, para que, sob o pretexto da repressão ao crime, possam ser contidos movimentos transformadores e libertadores. Sentimentos de intranqülidade, de medo e de insegurança são manipulados, especialmente, através de distorcidas informações divulgadas pela mídia. Com isto, produzem-se preocupações crescentes com a criminalidade, gerando uma demanda de maior repressão e uma maior receptividade para a enganosa publicidade que 'vende' o sistema penal como um produto-serviço destinado a fornecer proteção e segurança. Assim, vai se abrindo espaço para a ampliação do poder do Estado de punir.A política proibicionista, criminalizadora de condutas relacionadas à produção, à distribuição e ao consumo de algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas conhecidas, é, hoje, um dos mais poderosos instrumentos utilizados nesta ampliação do poder do Estado de punir. Com uma repressão mais rigorosa e propagandeada como mais eficaz, com leis excepcionais, o ampliado poder do Estado de punir intensifica o controle sobre todos os indivíduos e perigosamente ameaça os próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito".

KARAM, Maria Lúcia. “Redução de danos, ética e lei: os danos da política proibicionista e as alternativas compromissadas coma dignidade do indivíduo”. In: SAMPAIO, Christiane Moema Alves, CAMPOS, Marcelo Araújo (org.). Drogas, dignidade e inclusão social: a lei e a prática de redução de danos.