quarta-feira, outubro 4

Os Falcões e a Guerra às Drogas

Publicamos logo abaixo deste post a amostra de um panfleto produzido por integrantes do Princípio Ativo, a ser distribuído em algumas salas de cinema em Porto Alegre. O documentário iria fazer sua estréia no dia 12 de Outubro, mas a data foi adiada e não temos ainda notícia. Acreditávamos ser uma hora oportuna para propôr uma reflexão sobre políticas de drogas, junto ao público desta produção louvável que envolveu o MV Bill, o produtor Celso Athayde e a Central Única das Favelas.

É importante aqui dizer que o movimento hip-hop, pautado pela transformação, atitude e tomada de consciência dos jovens que vivem esta realidade, possui várias manifestações diferentes. Geralmente o tema das drogas é tratado com um fervor que é repressivo - mas sabemos este não é o mesmo fervor repressivo que ajudou a originar as políticas de proibição. Não é o fervor da intolerância e da estigmatização; é o fervor da revolta de se viver em um mundo dicotomizado, como diz o Mensageiro, "entre o crime e a necessidade". Um mundo que vê "nas drogas" associações de violência, extorsão, extermínio e contratos cumpridos com a vida.

Aqui nós falamos sobre a questão dos Direitos Humanos, o que engloba tanto os usuários de drogas ilícitas quanto os pequenos vendedores. Dando um passo atrás, antes do julgamento precipitado, e analisando melhor o contexto, todos os que participam do movimento sabem muito bem observar as estruturas que os oprimem, que não lhes dão chances de reconstruir sua cidadania. Reconstruir - pois como bem observou uma redutora de danos em Poa, é até um contrasenso falar em "resgate de cidadania" para pessoas que nunca a tiveram. Quem vive neste contexto também pode ver nos usuários de drogas de classe média pessoas que certamente não sofre as mesmas exclusões que ele. De fato: são poucas (e pequenas) as chances que os pequenos vendedores de drogas possuem.

É uma grande vitória que o documentário tenha conseguido abrir espaço para questões como essa num Brasil fascista, que se assusta com a violência urbana, mas que ainda insiste em eleger rótulos, discriminar, limpar os "cidadãos de bem" da "sujeira da periferia"; um país onde ainda se fala em pena de morte, onde se prioriza salvar a vida de alguns moradores de bairros bem iluminados, enquanto que muitas mortes continuam, não são vistas por ninguém e por isso, parecem (ou pareciam) não incomodar a ninguém.

Este incômodo é positivo. Aprendemos nos debates sobre drogas que as utopias da Guerra às Drogas levam muitas vezes os seus defensores a negar a realidade: negam o debate, repetem indefinidamente que a melhor saída é a repressão, como se as consequências disso pudessem ser esquecidas. Para alguns, basta um pequeno contato com estas realidades para perceber que acreditar nisso é no mínimo uma ingenuidade e no máximo, uma tirania; mas provavelmente um reflexo do desejo de punir o excluído: usuários ou vendedores de drogas, jovens, pobres, negros. Se como diz o Rappa "todo camburão tem um pouco de navio negreiro", é porque na base de todas as mortes destes jovens estão também discriminações morais comparáveis aos da escravidão - e talvez, os mesmos interesses econômicos da parte de quem explora, e a mesma conivência condenável de quem nada faz para mudar a situação. Para mudá-la, precisamos vencer o ímpeto de julgar e de apontar culpados, bem como as políticas que traduzem e multiplicam este sentimento.


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quinta-feira, julho 27

Sobre as implicações da nova lei (ainda) antidrogas

O texto abaixo é uma leitura parcial do Princípio Ativo sobre as implicações da nova lei que o senado aprovou e que aguarda no momento sanção presidencial.

Nosso amigo Elias Ulrich, do Ecologia Cognitiva, continua recolhendo depoimentos de coletivos e ongs relacionados, e está entregando tudo isso ao parecerista da secretaria de direitos humanos encarregado de avaliar a proposta de lei pelo palácio do planalto.

A quem interessar possa o email dele é eliasulrich@gmail.com e a nova proposta de lei pode ser acessada aqui.


Reflexões do Princípio Ativo sobre as implicações da nova lei (ainda) antidrogas

Redução de Danos

A lei traz alguns grandes avanços. Ao definir que as políticas de atenção em saúde voltadas às pessoas que usam drogas devem estar pautadas nos princípios e diretrizes do SUS, a lei aponta saúde como direito. Este debate está resolvido na Lei 8.080/90, que institui o SUS, ainda que no cotidiano dos serviços, seja alvo de disputa permanente. Em outras palavras: dizer que saúde é um direito implica em uma ruptura com o caráter normativo da atenção em saúde, devolvendo ao usuário dos serviços de saúde o direito de decidir sobre que modelos de atenção ele prefere. O “fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao suo indevido de drogas”, inscrito no capítulo que aborda a prevenção, indica o que queremos dizer. Além disto, a Redução de Danos aparece devidamente caracterizada como forma de atenção em saúde. Neste sentido, passamos a ter um dispositivo poderoso de enfrentamento da Justiça Terapêutica, pois mesmo que ainda seja permitido ao juiz determinar um tratamento (o que é um contra-senso se pensamos nos princípio dos SUS), ao menos podemos exigir que a definição sobre qual a abordagem terapêutica seja construída pelo sujeito, conjuntamente com um profissional de saúde do SUS.

Cabe ainda ressaltar que hoje é muito difícil a implementação de ações de Redução de Danos no sistema penitenciário. O artigo 26, ao que parece, avança neste sentido, mas ao mesmo tempo, esbarra em um detalhe no fim do texto: os apenados têm direito a atenção em saúde, definida “pelo respectivo sistema penitenciário”. Ou seja: na prática, os presidiários só terão acesso a seringas descartáveis, por exemplo, se assim o quiser o gestor público, não podendo os grupos de pressão exigir a implementação destas ações com base em lei. O problema, a nosso ver, resido na utilização do verbo; deveria se dizer que o direito de atenção em saúde será “garantido” pelo sistema penitenciário, e não “definido”.

Descriminalização

Há um avanço quando pensamos na figura do grower (usuário que planta para consumo próprio), que passa a ter reconhecida sua condição diferenciada da do traficante. Mas o avanço, aqui, é dúbio, pois, como já diz a socióloga Vera Malaguti Baptista, “descriminalizamos quem já está descriminalizado”, ou seja: o usuário de classe média, enquanto que a periferia "continua sangrando" - e ainda mais. A descriminalização do usuário foi contrabalançada pela maior penalização do “traficante”. Ganhamos quando se vê que o policial, a partir de agora, tem suas atividades cotidianas mais regulamentadas, como a garantia de que o termo circunstanciado deve ser assinado no próprio local do “delito”, e o desaparecimento da noção de “flagrante” quando se pensa no uso.

Nosso receio, neste sentido, está ligado ao lugar do “traficante” nesta nova lei. Para os jovens de periferia das grandes cidades, recrutados para o serviço de venda das substâncias tornadas ilícitas, decorre uma penalização muito maior, e uma marginalização ainda mais severa. Neste sentido, a lei não só não avança, como retrocede, uma vez que continua insistindo em focalizar a repressão ao tráfico a partir da penalização, detenção e confronto de todos os que trabalham na venda destas substâncias. Se o contexto da periferia está violento quando é relacionado à venda de drogas, esta violência é reflexo do descaso do Estado, cuja maior presença nestas áreas parece ser a repressão, ampliando a desigualdade social através da estigmatização destes pequenos trabalhadores do tráfico, e não contribuindo para resolvê-la. A necessidade de apontarmos para um bode expiatório ainda persiste, quando vemos que parte da penalização do usuário recaiu sobre estas pessoas - e ainda não se enxerga a repressão como sendo a principal fonte de conflito, por mais que o termo "inclusão social" conste várias vezes no texto.

Possibilidade de realização de pesquisas

Há avanços, ainda que tardios. Em grande parte dos países do mundo, estas pesquisas (envolvendo substâncias químicas tornadas ilegais) já estão muito avançadas. No entanto, quando pensamos em estudos realizados pela UNIFESP, por exemplo, com relação à utilização de maconha como insumo de Redução de Danos junto às pessoas que usam crack, numa lógica semelhante a das terapias de substituição, é que estes dispositivos legais demonstram sua importância. Já nos Estados Unidos, o órgão controlador de políticas sobre fármacos, o DEA, cria todo um aparato no qual as pesquisas sobre certos usos medicinais da maconha, por exemplo, são impossíveis: passam pelo questionamento de que não possuem embasamento científico suficiente - enquanto que, ao mesmo tempo, é impossível estudar a planta para ter este embasamento devido ao seu caráter ilegal.
Talvez possamos, em breve, contar com estes avanços aqui no Brasil.

Provocações ao movimento antiproibicionista brasileiro

A posição do Princípio Ativo é de que os avanços da presente lei estão muito aquém das necessidades do povo brasileiro, garantindo justamente aquilo que Vera Malaguti comenta: legislamos para a classe média, ao operar, ainda, uma mentalidade política sobrevivente da mentalidade de repressão ao elo mais fraco da conjuntura; ainda teimando em perceber a questão de forma imediatista. Mantivemos a lógica da penalização, e o máximo que conseguimos brota da idéia de que a pessoa que usa drogas deve ser alvo de uma política de atenção - e não da idéia de que ele é um cidadão de direitos. Neste sentido, entendemos que a presente lei não encerra o debate. Precisamos manter nossas lutas.
A cidadania das pessoas que usam drogas segue flexibilizada, atacada e, no máximo, concedida. Ainda não é uma conquista. A nova lei nos traz uma perspectiva de “tolerância”. Thiago Rodrigues, pesquisador do NEIP, lembrou em em um recente simpósio ocorrido na USP sobre o tema que a tolerância é um comportamento que só pode ser adotado de cima para baixo, acarretando sempre em uma posição desconfortável e de insegurança para o "tolerado". Murilo de Carvalho, por sua vez, diz que a cidadania, no Brasil, é sempre uma concessão.

Para nós, do coletivo Princípio Ativo, militantes do movimento antiproibicionista brasileiro, não há muito o que comemorar. Mesmo reconhecendo que o substitutivo da lei 6368/76 está apontando para o reconhecimento de um fracasso da lógicas meramente repressivas (seja na área da saúde ou da segurança), nossa única vitória está em poder usar esta lei, a partir de sua sanção, não somente como um dispositivo de reflexão sobre a proibição das drogas em nossa sociedade, mas também como um instrumento de luta pelos direitos dos usuários e dos pequenos vendedores das drogas tornadas ilícitas.

quinta-feira, julho 13

Pico!

"otoridade máuxima"

A partir de agora passaremos a contar com a colaboração do cartunista Pico, tentando dar conta de ilustrar os absurdos que o moralismo, a repressão e a desinformação nos proporciona..

Acima, vemos a cena na qual um "criminoso perigosíssimo para a sociedade" é detido!

quarta-feira, junho 28

Documento elaborado no 6º Encontro Nacional de Redutores de Danos

Dias 24 e 25 de junho ocorreu na cidade de Santo André , nas dependências do Centro Universitário Santo André UNIA Campus II o VI Encontro Nacional de Redutores de Danos, evento tradicional dentro do movimento social de RD, promovido pela ABORDA.
A temática deste ano foi a inserçao da RD no SUS, bem como a formaçao de plano estratégico para os Foruns Regionais, trocas de experiencias e reencontro dos companheiros .
As discussões foram conduzidas por Marcelo Araujo e Christiane Moema e renderam otimas reflexões e pontuaçoes a respeito dos caminhos trilhados pela RD nos ultimo tempos e de como fazer a aproximaçao dos saberes da Saude Publica com os saberes dos redutores de Danos.
Participaram cerca de 65 pessoas - representantes das seguintes associaçoes: ARDPOA, MMRD, RUDE do Rio Grande do SUl, REPARE do Paraná , Ipê Rosa de Goiania, C.A.S.A de SC, ACARIOCA, REDE PERNANBUCANA DE RD, Rede Mineira de RD, Associaçao de Usuarios de Alcool e outras drogas de Pernanbuco, RE Acreana de RD , Rede Brasileirense de Redutores de Danos, Associaçao Capixaba de RD, AMAPEQ/RARED do Amapá e Centro Convivencia É deLei de Sao Paulo . Particparam tambem representantes de PRD/ACRE, PRD/SAo José do Rio Preto,PRD de Santo André entre outros . E representantes do movimento anti probicionista, como Principio Ativo .
Ao final do encontro foi construido pelo grupo a 6ª Carta ao Brasil, cujo conteudo segue abaixo.



6a. CARTA AO BRASIL

Nós, redutoras e redutores de danos, participantes do Sexto Encontro Nacional de Redutores de Danos da Associação Brasileira de Redutores de Danos – ABORDA, instituição fundada em 1997, que congrega cerca de 400 associados, 5 Fóruns Regionais (Norte, Nordeste, Sudeste, Centro Oeste e Sul) e cerca de 200 Programas de Redução de Danos trazemos a público a presente reflexão.

Nos últimos 10 anos, houve grandes transformações nas perspectivas de Redução de Danos (RD), até então percebidas tão somente como estratégias de enfrentamento do HIV ligadas ao uso de drogas injetáveis. No decorrer do tempo a Redução de Danos, contribuiu significativamente na luta contra a AIDS e abriu um leque de novas possibilidades na forma de se fazer e pensar Saúde no Brasil passando a ser vista como uma Política Publica ligada ao enfrentamento da questão das drogas dialogando com duas realidades : prevenção ao HIV/AIDS e hepatites e tratamento para os possíveis problemas decorrentes do uso de substâncias psicoativas.

Atualmente, a Redução de Danos avançou por novos territórios dentro do contexto das drogas: novas drogas, usos diferenciados, outras vulnerabilidades levando o movimento social de redução de danos a ter estratégias de ação e aproximação com outros setores da saúde como :PSF, Saúde da Mulher, Saúde Mental, Saúde do Trabalhador entre outras que fazem parte deste mosaico vivo e ativo chamado Sistema Único de Saúde - SUS.

O Sistema Único de Saúde - SUS é uma árdua conquista do povo brasileiro, cujos princípios apontam em direção a um fazer em saúde com criatividade, humanidade e participação. Porém, a burocratização que vem acompanhando o processo de institucionalização bloqueia as possibilidades de inovação. Neste contexto, a Redução de Danos se apresenta como aliada na luta contra o estrangulamento dos princípios que estão na gênese do Sistema Único de Saúde - SUS. São formas de pensar e fazer saúde que se aliam às lutas e às praticas desenvolvidas por trabalhadores da saúde, usuários do SUS, movimentos sociais, instituições de ensino superior dentre outros.

A ABORDA reafirma que assumir a Redução de Danos no Sistema Único de Saúde - SUS implica necessariamente em incluir os agentes redutores de danos e os usuários de drogas atendidos e capacitados pelos Programas de Redução de Danos - PRDs. É preciso avançar no processo de inclusão e valorização deste trabalhador de saúde, regulamentação da profissão “redutor de danos”, reconhecimento dos Saberes adquiridos, formas de financiamento e na continuidade do atendimento às comunidades acessadas por estes que ainda estão à margem das Políticas Publicas.

Mas, nosso pensar não é apenas na Saúde; ele amplia-se para questões ligadas aos Direitos Humanos das pessoas que usam drogas e ao pleno exercício de sua cidadania. Neste sentido, necessitamos nos aproximar de outros saberes, outras práticas, outros espaços. Como a Educação pensa os usos de drogas? Como a Assistência Social vai perceber a pessoa usuária de droga? As políticas públicas de cultura e lazer se apresentam como possibilidades de construção de subjetividades que respeitem a possibilidade do uso de drogas?

Não se pode deixar de abordar ainda, nesta carta, a questão das políticas repressivas com relação aos usos e usuários das drogas tornadas ilícitas. Afinal, vivemos num mundo que optou, através de seus organismos internacionais, por um caminho repressivo, que julgava possível e desejável a construção de uma sociedade livre de algumas drogas. Passados pouco mais de cinqüenta anos, é preciso que façamos uma profunda reflexão quanto aos resultados destas políticas. O discurso de guerra às drogas se sustenta sobre a idéia de “proteção dos jovens do flagelo das drogas”. Porém, mais e mais jovens morrem por causa da guerra às drogas e não em função do uso, violência essa produzida pelo discurso proibicionista. Somada a este cenário a pratica cotidiana dos trabalhadores envolvidos na promoção de saúde das pessoas usuárias das drogas tornadas ilícitas fica comprometida diante da atual legislação “anti -drogas” e praticas jurídicas a elas relacionadas.

A ABORDA aponta ainda a sua atuação junto ao novo governo que se configurará no ano de 2007 no sentido de continuar sua discussão no cenário político para a inserção do tema no campo dos direitos humanos e seu financiamento pelas Políticas Públicas de saúde, educação, assistência social, segurança pública, cultura e trabalho.

Desta forma nos colocamos junto e ao lado de todos aqueles que lutam pelo Direitos Humanos na construção de um sociedade livre, justa e igualitária que respeite as diferentes formas de ser, sentir e estar no mundo.


Santo André, 25 de junho de 2006.

sábado, junho 17

Comunicação realizada no 3º Seminário Gaúcho de Redução de Danos - Porto Alegre/2006

Bom dia.
Meu nome é Tiago Ribeiro e estou aqui representando o Coletivo Princípio Ativo – por uma nova política de drogas. Como essa é uma mesa sobre política de drogas, em um seminário de redução de danos, pensei que a melhor contribuição que eu poderia dar, como antiproibicionista e como acadêmico de filosofia, interessado em antropologia, é apresentar uma reflexão que nos possibilite compreender melhor os fundamentos simbólicos da proibição ao uso de drogas, enquanto uma instituição da nossa sociedade e da nossa cultura.

Tomarei por ponto de partida que a atual política de drogas não funciona. Ela gera mais violência, discriminação, desrespeito aos direitos humanos, enfim, gera muito mais danos do que as próprias drogas. Em um seminário sobre redução de danos é fundamental que essa idéia esteja sempre presente. Ressalto, também, que penso a redução de danos de uma forma ampliada, já que acredito que processos que se desenrolam em diversas outras esferas interferem na saúde, gerando danos a esta. A proibição ao uso de drogas, no meu entendimento, constitui, ela mesma, um dano a ser reduzido, dano este muito mais preocupante do que os danos diretamente causados pelo uso das substâncias proibidas.

Mesmo em alguns setores mais conservadores da sociedade já se está chegando à conclusão de que essa política não está funcionando. Mas por que, então, quando buscamos outras soluções, a descriminalização e a regulamentação das relações de produção, distribuição e consumo de drogas, não são consideradas seriamente como alternativas? Nós, do Princípio Ativo, em maio desse ano, pretendíamos realizar uma manifestação, em Porto Alegre, por uma nova política de drogas. Em panfletos e pela Internet apresentamos toda uma argumentação lógica e racional solicitando a instauração de uma esfera pública que viabilizasse um debate mais qualificado sobre política de drogas e as alternativas possíveis. No entanto, houve uma reação absolutamente desproporcional, irracional e raivosa. A mídia tratou a questão de uma maneira rasa, estimulando um clima de tensão e confronto. Tal abordagem por parte da imprensa, que apresentava a manifestação como uma defesa ao uso de drogas, conduziu a uma situação em que fomos obrigados a cancelar a manifestação para evitar todo tipo de violência que estava se anunciando.

A pergunta que fica é: por que, mesmo quando o antiproibicionismo se apresenta por meio de um discurso responsável, ponderado e, principalmente, argumentativo, não se consegue estabelecer linhas de diálogo? Uma interpretação possível pra isso é que nós, seres humanos, seres culturais, formamos e somos formados por sistemas simbólicos que classificam e atribuem sentido às nossas experiências e, no caso do uso de drogas, o que se institucionalizou como pensamento oficial e dominante é o de que as drogas são responsáveis diretas por grande parte dos problemas da humanidade.

No entanto, esse sentido oficial não é o único, porque as pessoas não recebem passivamente a interpretação que a sua cultura dá para as coisas. As pessoas reinterpretam todos os códigos culturais da sociedade onde vivem. Se não fosse assim, eu não estaria aqui falando contra a proibição. Então o que acontece é que se cria toda uma diversidade de significados em relação ao uso de drogas e, muitas vezes, esses significados entram em choque com aquele sentido que é materializado nas ações institucionais. Essa diversidade contrasta fortemente, também, com uma idéia corrente, principalmente entre alguns médicos e profissionais de saúde (e freqüentemente repetida pela grande mídia e por grande parte do discurso institucionalizado), segundo a qual o uso de substâncias psicoativas pode ser compreendido, em seus efeitos e sentidos, a partir do estudo de características objetivas e presentes na própria constituição química dessas drogas. Estas características seriam as determinantes do caráter da experiência do usuário.[1]

Assim, nessa comunicação, proponho uma reflexão acerca de alguns elementos que poderiam operar na construção dessa diversidade de sentidos. Parto do entendimento de que esses múltiplos significados provêm mais de contextos culturais do que de uma característica intrínseca às substâncias. Minha abordagem pretende, ainda, compreender porque as políticas de drogas proibitivas e repressivas se mantêm mesmo diante de tantas evidências do seu fracasso e de que elas, se pretendendo solução a um problema social do uso de drogas, na prática funcionam como agravamento desse problema. Apesar da proibição e da repressão, o consumo de drogas só aumenta a cada ano e a violência gerada pelo tráfico, produto da proibição, cada vez mais atinge a toda sociedade. Mas a sociedade, acossada por essa violência gerada pela proibição, aponta para as drogas e seus usuários como os grandes culpados desses problemas. Por que as pessoas continuam apostando em uma estratégia que já demonstrou ser ineficiente?

Os discursos, as definições e os sentidos atribuídos ao uso de psicoativos, no meu entendimento, dizem mais respeito ao esquema simbólico no interior do qual se produziram do que às substâncias elas mesmas enquanto objetos do mundo físico. Então, se “cada esquema cultural particular cria as possibilidades de referência material para pessoas de uma dada sociedade”[2], sendo que essas referências não são as únicas possíveis, podemos compreender como os mesmos psicotrópicos, utilizados em contextos simbólicos diversos, ensejam significados também diversos e mesmo “efeitos” diferentes em seus usuários. De outro modo, como explicar a inexistência de distúrbios sociais em contextos de uso religioso, místico, sagrado, terapêutico ou produtor de laço social de psicoativos como, por exemplo, a maconha ou a ayahuasca, sendo que, em nossa sociedade, tais distúrbios são sempre apontados pelos discursos médicos reproduzidos pelo senso comum, como inerentemente ligados ao consumo de drogas, pois advindos de propensões motivadas nos usuários por propriedades químicas dessas substâncias?

O antropólogo Edward MacRae faz referência a diversos casos de pessoas que, usando drogas de modo desregrado em nossa sociedade, uma vez em contato com o uso ritualizado do chá de ayahuasca, foram assumindo, no contexto de uma significação religiosa para o consumo da substância, padrões de uso diversos daqueles habitualmente relacionados ao uso de psicoativos. Por causa dessa mudança de contexto simbólico, essas pessoas passaram a controlar o uso e assumiram estilos de vida austeros, não-problemáticos e saudáveis. Assim, continuaram usando uma droga, porém, pela atribuição de outro sentido a esse uso, não realizaram o estereótipo do viciado e do dependente que degrada sua vida.

Reflexões como essa nos levam a pensar no poder desses sistemas de classificação dos objetos e fenômenos da vida prática. Quer dizer, podemos pensar em como a posição relativa que o uso de drogas ocupa no sistema de classificação da nossa sociedade contribui decisivamente na constituição de situações de violência e no desencadeamento de processos conflituosos: a partir de tal perspectiva nos é possível considerar que o significado atribuído às práticas de uso de drogas interfere profunda e inevitavelmente na consolidação da violência inerentemente atribuída ao “mundo das drogas”, fazendo do estudo dos contextos socioculturais algo fundamental na compreensão desse fenômeno.

Assim, por exemplo, quando se fala em uso de maconha, se faz referência a uma série de efeitos mais ou menos objetivos que esta droga causaria. Contudo, essa diversidade de efeitos é extremamente ampla e não se restringe àqueles que são referidos como “os” efeitos do uso dessa substância, dificultando mesmo o apontamento daqueles que seriam os efeitos “principais”. Se somarmos a isso o poder de determinação contido nos múltiplos significados possíveis para essa prática (poder que interfere diretamente sobre a experiência psicoativa que o usuário terá), chegamos a um quadro em que buscar os sentidos dos usos de drogas em análises químicas das substâncias reduz drasticamente a nossa real compreensão acerca do fenômeno.

Cada cultura, então, ao tomar cada substância como objeto de reflexão e, conseqüentemente, classificação, centra seu foco e promove, como qualidade definidora do fenômeno, alguns de seus efeitos, a saber, expressamente aqueles que melhor se inserem no sistema classificatório já existente (construído, em nossa sociedade, a partir dos pareceres médicos e das análises bioquímicas). É esse sistema que vai operar como gerador de sentido para os objetos e práticas do mundo das ações, construindo a si mesmo sobre uma base lógica onde cada elemento se define em relação aos elementos já assentados e conceitualizados, que servem de fundamento para o pensamento. Se lembrarmos, então, que os primeiros discursos que assumiram um caráter estrutural acerca do uso de drogas foram os discursos médicos, poderemos conceber razoavelmente o modo como esses discursos se adequaram coerentemente a concepções anteriores (se fundamentando em uma idéia de Ciência enquanto conhecimento neutro e objetivo)[3] e como eles vieram a influenciar em concepções futuras (inclusive, nas políticas que conduziram à criminalização daquilo que, até então, era compreendido como um hábito de negros e pobres de regiões afastadas).

Pensemos agora no que acontece com uma droga classificada, em nossa sociedade, na categoria “medicamento”. Pode ser, quem sabe, uma droga potente como o Prozac, ou mesmo a aspirina. A ingestão de substâncias como essas também produz uma série de “efeitos” no organismo. Um antidepressivo como o Remeron gera uma sonolência e uma afetação dos sentidos e capacidades motoras bastante comparáveis a certos quadros atribuídos ao uso de maconha. No entanto, as propriedades destacadas no discurso oficial acerca das drogas psiquiátricas são aquelas que melhor corroboram com a categoria na qual tais drogas estão inseridas, a categoria de medicamentos. As propriedades contraditórias com a classificação estabelecida são entendidas, no esquema simbólico, como “efeitos colaterais”, ou seja, como “acidentes” e não como “essência” da coisa. Voltando à maconha, a sua classificação como “droga” e tudo que isso implica em nossa sociedade, impede que a atenção se ponha em outras de suas propriedades, notadamente as medicinais (tradicionalmente e mesmo já cientificamente comprovadas em diversos casos).

Apresento um exemplo ainda mais corriqueiro: o chimarrão. No Rio Grande do Sul o consumo dessa substância é tradicional, estando inserido, no esquema simbólico constituído na região, como um laço social entre indivíduos e grupos. Ora, a erva-mate apresenta propriedades estimulantes que alteram funções fisiológicas do organismo humano (o que a caracterizaria, segundo a definição canônica da Organização Mundial da Saúde, como uma droga)[4] mas estas propriedades não são evidenciadas, na constituição cultural do significado do consumo do chimarrão, como propriedades definidoras do “ser” dessa prática, de modo que tomar chimarrão é, no sistema simbólico da cultura tradicional gaúcha, um costume, um laço social perfeitamente inserido e relacionado logicamente com outros conteúdos e práticas constituintes desse universo simbólico.

Exemplos semelhantes abundam. Destaco o caso típico do vinho. Trata-se de uma bebida alcoólica, uma droga, portanto. No entanto, possui um uso religioso tradicional, tendo papel importante nos ritos cristãos. Em nossa sociedade, o uso do vinho nesses rituais não é classificado como um uso de droga e tampouco abundam registros de abuso da substância nesse contexto ritual. Afinal, opera aí, novamente, um código cultural, um sistema de significados que ultrapassa meras análises químicas e que compreende o uso em contexto ritual do vinho como um aspecto vinculado à categoria do sagrado e não a uma simples alteração da consciência. Se pensarmos no uso do haxixe em comunidades dos Himalaias[5]e no uso da maconha em comunidades jamaicanas específicas[6]e em tribos do interior do Maranhão, poderemos verificar como estes usos estão, do mesmo modo, coerentemente posicionados nos esquemas simbólicos dessas populações, não constituindo, por não significarem, objetos associados a conflitos e rupturas no interior desses grupos.

Segundo o antropólogo Anthony Henman, “o contexto em que a maconha é mais consumida [entre os índios tenetehara] ocorre durante a realização de trabalhos que exigem esforços físicos. Acredita-se que a planta tem efeito estimulante, ajudando na execução das tarefas pesadas associadas às derrubadas e plantações”.[7] À essa classificação do uso da maconha, tão diversa da concepção dominante na nossa cultura, se soma a significação conferida, por este mesmo grupo indígena, ao uso do tabaco em seus rituais de xamanismo: “o estado de transe – uma autêntica narcose, com o pajé caído duro no chão por um período de dez a vinte minutos – é atingido unicamente pelo uso do tabaco, sendo a fumaça engolida para o estômago, acompanhada de violentos tragos e gesticulações”.[8]

Trata-se de exemplos contundentes de assimilação do uso de uma substância psicoativa a um esquema de significação culturalmente construído e bastante diverso daquele que a nossa sociedade estabeleceu (me refiro aqui, obviamente, ao esquema institucionalizado e dominante no nível discursivo).

Pensando na nossa sociedade, podemos afirmar que é o lugar que as drogas ocupam em nosso sistema simbólico que faz com que seu uso esteja associado, necessariamente, a doenças, crimes e mortes. Não há nada nas próprias substâncias que leve a isso. Se houvesse, em todas as sociedades onde há uso de drogas, essas conduziriam as pessoas às doenças, aos crimes e às mortes. Já vimos, contudo, não ser esse o caso. Deste modo, a ruína de vidas saudáveis, devido ao uso de drogas, pode ocorrer mais porque as pessoas tendem a realizar as prescrições culturais, do que por poderes que as substâncias teriam de levar as pessoas a agir desta ou daquela forma. A espiral de conflitos familiares, contravenções, violências e sofrimentos estaria, assim, já anunciada a partir da significação culturalmente dada a tais conteúdos. A profecia tende sempre a se auto-efetivar.

O significado do uso de drogas nas sociedades ocidentais atuais se constituiu, então, a partir de uma representação seletiva dos significados possíveis para a compreensão dessa prática, tomada como objeto de reflexão e classificação. Nos processos de representação seletiva um significado é posto em primeiro plano em relação a todos os outros significados possíveis. Assim, a significação do uso das drogas tornadas ilícitas enquanto uma prática ofensiva, tanto ao organismo do usuário quanto ao organismo social, significação esta que encontra seu apoio e sua história nos pareceres médicos do início do século XX, se sobrepõe, em nossa cultura, às significações que se referem a esse uso como uma prática terapêutica, lúdica, mística, introspectiva ou espiritual, caracterizando um processo de classificação no qual a aposta em certos atributos do objeto ou da prática, e a desconsideração “científica”, entre aspas, de outros desses atributos, cristaliza como verdade uma possibilidade. Mas, como esses significados postos em primeiro plano se refletem nas práticas dos atores sociais, pois as orientam, eles acabam desencadeando uma série de conseqüências como, por exemplo, a estigmatização e marginalização dos usuários, a potencialização de conflitos, além de uma série de arbitrariedades e corrupções (internações compulsórias, pagamentos de subornos a policiais, etc). Há, além disso, uma marcante incoerência que se estabelece quando os esquemas simbólicos se concretizam nas práticas sociais e se evidencia a promoção de sentidos diversos no que se refere a outros psicoativos como, por exemplo, as bebidas alcoólicas.

Mas então, se a cultura tem, a partir da operação que faz de sistemas de classificação produtores de significados, um poder definidor das concepções dos indivíduos e grupos que a constituem, como pode o uso de drogas ilícitas ser tão disseminado no seio de sociedades que o classificam como nocivo, perturbador da ordem e gerador de violência e, fundamentalmente, como pode se produzir, no interior dessas mesmas sociedades, discursos tão variados e mesmo antagônicos ou contrários aos condicionamentos culturais?

As classificações culturalmente construídas podem, ou não, ser definidoras da experiência dos indivíduos. Quando as pessoas colocam em ação seus conceitos e categorias, estes podem contradizer as experiências que elas têm. Pode não se comprovar, na prática, aquilo que os discursos oficiais afirmam sobre as drogas, seus usos e usuários. Ora, sabemos que é a minoria dos usuários que poderia ser enquadrada como “dependentes”. Assim, me valendo de algumas assertivas apropriadas pelo senso comum dos discursos “especializados” sobre uso de drogas, o consumo de maconha pode, “surpreendentemente”, não significar “a porta de entrada para o uso de outras drogas”, o uso de psicoativos pode, na prática, não constituir “um caminho sem volta” e, pasmem, o uso de drogas pode não ser, intrinsecamente, uma prática geradora de violência, conflitos sociais e familiares e, portanto, um flagelo em bases objetivas.

Os usos de drogas, podem ser, ao contrário, exemplos de práticas religiosas, recreativas, socializadoras, a droga significada como força, paz, tranqüilidade, bem-estar... uma série de significados “inesperados”, que se constituem a partir das experiências de sujeitos e grupos que ressignificam conteúdos específicos no interior de um sistema simbólico convencionalizado. No entanto, os sujeitos não engendram significados a partir do nada, de modo que é o substrato de sentido conferido pela cultura que lhes concede o universo de sentidos possíveis na significação dos objetos e práticas. Assim, significados não convencionais para usos de drogas tornadas ilícitas em nossa sociedade poderiam estar se constituindo a partir da observação de usos convencionais de outras substâncias (bebidas, remédios, etc). Da mesma forma, parece anunciar-se no seio da nossa cultura o modelo para uma nova política de drogas: a atual regulamentação do tabaco, que é racional, socialmente responsável e, ao mesmo tempo, respeitadora dos direitos e da liberdade individual, sem, no entanto, gerar os problemas que uma proibição total geram.

Uma vez isso compreendido, começa a se desfazer a idéia de que legislações proibitivas e práticas repressivas possam “sanar o mal” do uso de drogas. Primeiro porque a compreensão dos modos pelos quais interpretações que se pretendem verdades são construídas no interior de sistemas simbólicos de classificação coloca em xeque a própria idéia de uso de drogas como prática intrinsecamente causadora de conflitos e violências e, segundo, porque essa mesma compreensão da construção de sentidos permite vislumbrar a simplificação que se faz quando se classifica como crime ou doença uma prática de múltiplos significados.

O problema maior, contudo, parece residir principalmente nas conseqüências dessa criminalização do uso e da venda de certas drogas: a constituição das organizações criminosas que se financiam e se armam a partir do comércio das substâncias proscritas, gerando uma série de danos sociais que ultrapassam em muito os danos que se podem relacionar diretamente ao consumo de psicotrópicos. Como aponta Alba Zaluar, “o crime organizado desenvolveu-se nos atuais níveis porque tais práticas socialmente aceitáveis [o jogo, as drogas e a diversão] e valorizadas foram proibidas por força da lei, possibilitando níveis inigualáveis de lucros a quem se dispõe a negociar com esses bens”. Assim, “as taxas de crimes violentos aumentaram em todos os países em que o combate à droga apela para a repressão, inclusive no Brasil”[9], e a grande questão está em “analisar como a criminalização de um hábito ou gosto individual – ou seja, uma ação arbitrária e ilegítima do Estado [...] aprofunda a revolta e as carreiras criminosas dos jovens usuários de drogas”.[10]

Então, no nosso sistema social, a legitimidade conferida ao Estado para coibir o uso dessas substâncias pode ser entendida como uma legitimidade para a imposição de um significado convencional a todos aqueles que, por ventura, sejam flagrados “significando diferentemente” o uso de drogas. Trata-se, creio, de uma conclusão de certo modo patética, mas que parece seguir logicamente da análise até aqui realizada e que se confirma empiricamente a partir da total incompreensão demonstrada, até então, por grande parte das autoridades constituídas acerca das especificidades de significados dos usos de drogas e das formas pelas quais esses significados se constroem, no âmbito cultural e no âmbito individual, pela constante confrontação de conceitos e classificações simbólicas com práticas, vivências e interesses constitutivos dos esquemas de vida dos indivíduos e dos grupos no interior de uma sociedade.

Deste modo, o significado do uso de drogas tem sido expresso nas sociedades ocidentais atuais como efeito direto de propriedades objetivas das substâncias em questão, ignorando o valor relativo do sentido dado pela sociedade ao fenômeno. Isso acontece devido à existência de um discurso revestido de autoridade pela cultura oficial, discurso este que, respaldado pelas instituições mantenedoras, reprodutoras e divulgadoras da ordem cultural, e pretensamente objetivo e verdadeiro (portanto, “legítimo”), constitui, no entanto, tão somente uma das possibilidades de significação conferidas aos sujeitos por esta mesma ordem. Como escreve o antropólogo Gilberto Velho,
“a própria noção de tóxico e o conceito de drogas são altamente problemáticos e, dependendo do critério e da posição do investigador, podem abarcar desde a heroína ao papo-de-anjo. [...] existem n maneiras de utilizar as substâncias, em função de variáveis culturais e sociológicas. Estas não só se somam, como complexificam as distinções que possam ser registradas ao nível da análise bioquímica”.[11]

Nesta mesma linha segue o sociólogo Carlos Geraldo Espinheira quando afirma, enfaticamente, que “as drogas não têm o mesmo efeito para pessoas socialmente diferentes!”[12]e, depois, acrescenta que “o uso de drogas, como estilo ou ethos, depende mais do usuário do que da droga que usa, e isso significa que não se pode atribuir à droga uma autonomia em relação ao indivíduo ou mesmo ao contexto social, mas, ao contrário, perceber o indivíduo e o seu contexto para compreender o tempo e os espaços das drogas em suas vidas”.[13]

De minha parte, penso que, ao desconsiderar essas especificidades e essa pluralidade de sentidos e contextos envolvidos na constituição do que, afinal, significa o uso de drogas, se atendo tão somente aos significados institucionalizados a partir de uma perspectiva particular, a perspectiva médico-legal, as políticas públicas criminalizantes da produção, da distribuição e do uso das drogas tornadas ilícitas operam no sentido de fortalecer a cadeia de violências, conflitos, arbitrariedades e corrupções diversas nos sistemas policial e judiciário, afastando-se sensivelmente daquele que deveria ser o papel do Estado e contribuindo decisivamente no agravamento de um problema que é, em última instância, fruto de uma construção particular das sociedades contemporâneas. Como escreve Baratta, “a história das drogas, anterior à economia capitalista é, com raras exceções, um aspecto normal da história da cultura, da religião e da vida cotidiana em toda sociedade: não é a história de um ‘problema’”.[14]

Assim, uma política de drogas deve ser pensada tendo em vista que uma grande parte dos usuários não compartilha dos significados institucionalizados desse uso. São pessoas que não representam as drogas como um problema e que desenvolvem padrões não-problemáticos de uso. Uma legislação mais inteligente deve levar esses outros sentidos em conta porque, se assim não o fizer, sempre que se deparar com um caso de uso não-problemático de drogas (e há muitos), a aplicação da lei sobre esse caso representará a construção do problema social, que antes não havia.

Trata-se, então, a meu ver, de buscar, o Estado e a sociedade, no que se refere à abordagem dessa questão por meio de políticas públicas, a partir de uma compreensão mais apurada acerca do universo de sentidos envolvidos nos fenômenos do uso de drogas, a construção de modelos mais adequados que dêem conta dessa complexidade e, a partir do abandono de abordagens moralizantes e repressivas (que só maximizam conflitos e incompreensões diversas), se adotem formas de regulamentação mais condizentes com a multiplicidade de significados com que opera o ser humano na constituição do vasto espectro da sua liberdade existencial.


[1] FIORE, Maurício. Algumas reflexões a respeito dos discursos médicos sobre uso de “drogas”. Caxambu, 2002. Disponível em http://www.neip.info/downloads/anpocs.pdf, acessado em 19 de dezembro de 2005.
[2] Idem. p.184.
[3] CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[4] A OMS define “droga” como qualquer “substância que, quando administrada ou consumida por um ser vivo, modifica uma ou mais de suas funções, com exceção daquelas substâncias necessárias para a manutenção da saúde normal”. OMS apud FIORE, Maurício. Tensões entre o biológico e o social nas controvérsias médicas sobre o uso de “drogas”. Caxambu, 2004. Disponível em http://www.neip.info/downloads/t_mau1.pdf, acessado em 19 de dezembro de 2005.
[5] OLMO, Helena. Charas dos Himalaias. Cânhamo – revista de cultura canábica. Lisboa, número 3, p.20-29, out./nov. 2004.
[6] GONÇALVES, Pedro. Jamaica: como o ar que se respira. Cânhamo – revista de cultura canábica. Lisboa, número 2, p.28-35, ago./set. 2004.
[7] HENMAN, Anthony. “A guerra às drogas é uma guerra etnocida”. In: HENMAN, Anthony e PESSOA JR, Osvaldo (orgs). Op. Cit. p.103.
[8] Idem. p.104.
[9] ZALUAR, Alba. “A criminalização das drogas e o reencantamento do mal”. In: ZALUAR, Alba (org). Op. Cit. p.106.
[10] Idem. p.123.
[11] VELHO, Gilberto. “A dimensão cultural e política dos mundos das drogas”. In: ZALUAR, Alba (org). Op. Cit. p.24.
[12] ESPINHEIRA, Gey. “Os tempos e os espaços das drogas”. In: TAVARES, Luiz Alberto (coord.). Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, 2004. p.12.
[13] Idem. p.19.
[14] BARATTA, Alessandro. Op. Cit. p.39.

terça-feira, junho 13

Participação do Princípio Ativo no 3º Seminário Gaúcho de Redução de Danos

III SEMINÁRIO GAÚCHO DE REDUÇÃO DE DANOS
“O LUGAR DA REDUÇÃO DE DANOS NO SUS”
16 E 17 DE JUNHO DE 2006
LOCAL: AUDITÓRIO DANTE BARONE (ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA)
PORTO ALEGRE

ORGANIZAÇÃO: FÓRUM METROPOLITANO DE REDUÇÃO DE DANOS

PROGRAMA


Dia 16 de Junho

9 – 9h30min: Mesa de Abertura

- Mirtha Sudbrack (PN DST/Aids)
- Sandra Sperotto (Chefe de Seção da SC DST/Aids – SES RS)
- Márcia Colombo (Consultora para RD da SC DST/Aids – SES RS)
- Coordenação do PRD de Porto Alegre (a confirmar)
- Ricardo Brasil Charão (Fórum Metropolitano de Redução de Danos)

9h45min – 12h: Contextualização da Redução de Danos no Brasil

- Domiciano Siqueira (ABORDA)
- Ronaldo Hallal (PN DST/Aids) (a confirmar)
- Coordenadora da Mesa e Debatedora: Rose Mayer (CRRD ESP)

10h45min: Intervalo

11h: Debate sobre a mesa anterior

12h30min: Encerramento dos Trabalhos da Manhã

14h – 18h: Práticas de RD e a construção do SUS

- ARDPoA (Porto Alegre)
- PRD ASPA (São Leopoldo)
- PRD Fissura Pela Vida - VHIVA MAIS (Canoas)
- PRD GAPA RG (Rio Grande)
- PRD Santa Maria
- PRD Santa Cruz do Sul
- Coordenador da Mesa: Mário Jéferson (ARDPoA)

16h: Intervalo

16h30min: Debate sobre a mesa anterior

- Debatedor: Osvaldo Carvalho (PRD Fissura Pela Vida - Canoas)

18h – Encerramento dos Trabalhos

Dia 17 de Junho

9h – 12h: Políticas Públicas sobre Drogas (Diferentes Olhares)

- Representante do CONEN/RS
- Representante do COMEN/Porto Alegre)
- Márcia Colombo (RD e HIV/Aids)
- Glória Marcolla (Saúde Mental)
- Tiago Ribeiro (Princípio-Ativo)
- Fátima Machado (RUDE/RS)

11h: Participação do Deputado Federal Paulo Pimenta discutindo com a Plenária o Substitutivo ao Projeto de Lei N. 7.134, de 2002, que prevê a descriminalização do usuário de drogas.

12h: Encerramento dos trabalhos da manhã

13h30min: Mobilização Social

- Semiramis Vedovato (REPARE/ABORDA)
- Christiane Moema Sampaio (ABORDA)
- Dênis Petuco (ARD'PoA/Princípio Ativo)
- Coordenação da Mesa: Fátima Machado

14h30min: Debate e Plenária

15h30min: Intervalo

15h 45min: Fórum Regional Sul da ABORDA

- Coordenação: ABORDA

17h: Encerramento

O seminário é gratuíto. Há certificados para todos que participarem.

sábado, junho 3

Mensagem de Elias Ulrich, do blog Ecologia Cognitiva:


Senado reintroduz prisão para usuário na 'nova' política de drogas

A matéria de "O Globo" apresenta bem
a situação em que foi encaminhada a aprovação da 'nova' política de drogas brasileira:
"A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou ontem a reintrodução da pena de prisão para usuário de drogas no projeto que aprimora a Lei Antidrogas, de 2002. A pena, que vai variar de seis meses a dois anos de cadeia, será aplicada ao usuário que não cumprir as penas alternativas: prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programas ou cursos. A versão original do projeto não incluía a prisão dos usuários como punição. Já está prevista também multa para quem não cumprir algumas dessas medidas... A comissão aprovou ainda a exclusão da proposta da Câmara de pena alternativa para quem semeia, cultiva e colhe plantas destinadas à preparação de drogas. Quem for flagrado, por exemplo, com um pé de maconha plantado num vaso será tratado como traficante e preso. As alterações são de autoria dos senadores Demóstenes Torres (PFL-GO) e Magno Malta (PL-ES), conhecidos por posições rigorosas no tema."
CCJ do Senado aprova prisão para usuário de drogas - O Globo
Um projeto leva 4 anos tramitando no congresso, e em apenas uma sessão da Comissão de Constituição e Justiça é completamente desfigurado pela atuação de 2 senadores obviamente mal preparados para lidar com a questão? Isto não pode ser legal... e temos informações de que realmente houve violação do regimento na introdução das alterações de mérito no projeto de lei. A Ecologia Cognitiva manifestou-se diretamente aos senhores senadores:

Prezado Senador,

Tivemos a informação de que aconteceu hoje na CCJ um acordo prevendo que o usuário de drogas que não se submeta às medidas educativas estará sujeito, sucessivamente, a restrição de direitos; se isso não resolver, a multa; e, somente em último caso, à pena de detenção. Isso é um avanço. Mas fico com a opinião do representante do Ministério da Saúde que a classifica de "avanço tímido". Sem dúvida, muito melhor seria prevalecer a redação original que foi proposta, sem qualquer previsão de pena privativa de liberdade.

Porém o que realmente causa espanto mesmo é a pena para "semear, cultivar ou colher". Afinal, aquele que for condenado por posse para uso próprio somente sofrerá privação de liberdade como última alternativa. Já quem "semear, cultivar ou colher" continuará sendo, em princípio, condenado por tráfico, recebendo, portanto, pena pesada. No texto anterior do projeto, essa conduta havia sido expressamente equiparada à posse para uso próprio, ficando, portanto, também sujeita às penas alternativas.

Como o senador deve saber, principalmente em relação à canabis, o uso social positivo só pode acontecer através do cultivo pessoal da planta, que elimina a relação com o tráfico e pode demonstrar a possibilidade da integração social do uso culturalmente regulado. Eliminar esta possibilidade é perseguição política, como de costume, e vai na contramão de outras iniciativas continentais de recuperação e valorização do uso tradicional / medicinal / espiritual de plantas psicoativas.

Portanto, podemos dizer que a 'nova política de drogas' brasileira transformou-se num fiasco. Esperamos tanto tempo para isso? Para sermos traídos pelos senadores da república? Absolutamente não -- algo precisa ser feito. Acredito que seja papel do senador nos ajudar neste momento.

Aqui, uma informação importante que nos foi passada por especialistas nas regras regimentais do senado:

Qualquer alteração de mérito que venha a ser agora introduzida no projeto de lei pelo senado, inclusive essas que foram realizadas na CCJ, é anti-regimental. Isso porque o projeto foi apreciado originalmente pelo senado; depois pela câmara. Agora, ao retornar ao senado, cabe a este, simplesmente, aprovar, rejeitar ou fazer emendas de redação; não emendas de mérito, porque o projeto já foi apreciado pelo senado. Tivemos informações de que os consultores alertaram os senadores para isso, mas não adiantou. Eles atropelaram o regimento para mudar o que queriam.

Isso nos lembra de outras situações recentes em que projetos de reforma das políticas públicas para substâncias psicoativas foram bloqueados por instâncias alheias aos processos legítimos e representativos, e à revelia da avaliação de autoridades e especialistas.

É importante neste momento que o senador seja vocal em relação à essa violação do regimento pelos senadores, e que auxilie a sociedade civil mobilizada a fazer valer a legalidade nos trâmites da função representativa do congresso nacional.

Aguardo retorno.

Chamo a atenção dos interessados para o fato de que esta movimentação é política -- precisamos de consciência e firmeza para fazer valer nossos direitos de cidadão, e validar a cultura do uso positivo das substâncias psicoativas frente à sociedade.

***

Comentário nosso:

Validar a cultura é antes de mais nada reconhecer que através da educação não-repressiva e dos controles sociais se poderá construir uma política de drogas que reduza os danos sociais hoje associados ao seu uso, bem como os danos químicos que sejam resultantes tanto da falta de fiscalização quanto da desinformação sobre o assunto.

Validar a cultura é reconhecer que jamais se poderá impedir alguém, através da força física, de utilizar quaisquer substâncias, lícitas ou ilícitas. Até porque estes não parecem ser os reais motivos: a guerra às drogas é uma guerra política; e a própria divisão entre lícitas ou ilícitas não se sustenta a não ser por julgamentos morais. É uma guerra ao usuário na exata medida em que desconhece e desrespeita a sua realidade. Desconhece o fato de que existe também um uso não-problemático destas substâncias.

Como bem relaciona um artigo do periódico Los Angeles Times: os usuários sabem que não se pode forçar alguém a usar psicoativos contra sua própria vontade. Mas é uma pena que as políticas atuais e seus defensores não tenham a mesma delicadeza, quando forçam as pessoas a entrarem na sua "alucinação" de que é possível existir um "mundo sem drogas" - e de que o caminho mais adequado para isto seria declarar uma guerra, ainda que em nome da paz.

quarta-feira, maio 24

Reflexões sobre Drogas e Violência - parte dois


Cidadãos de PoA relacionam tráfico de drogas com a criminalidade

Ainda sobre a Conferência de Segurança Urbana: ficamos intrigados ao notar que, através da pesquisa realizada pelo GT de Segurança Urbana da UFRGS nos bairros da capital (com um número de 308 questionários ao total), 155 pessoas disseram que acham "o tráfico de drogas" o maior culpado pela criminalidade.

Em seguida ao tráfico, vinham os seguintes fatores:
* Desemprego................... 132
* Impunidade.................... 92
* Pobreza....................... 86
* Falta de policiamento......... 56

No contexto destes dados e, obviamente, da discussão que se levantou sobre o ocorrido em SP, tentemos discutir abertamente sobre como podemos analisar esta relação entre tráfico de drogas e violência. E também, sobre qual é o "papel" do usuário de drogas nisso tudo, já que ele é tão associado pela violência urbana através do senso comum (idéias cujas origens tentamos pensar na primeira parte).

Sabemos que o tráfico de drogas é somente uma das várias atividades das quais o crime organizado se vale, entre o tráfico de armas, extorsões mediante sequestros, assaltos a bancos, a carros, etc. Porém o tráfico de drogas, em especial o de cocaína, é o mais lucrativo, e certamente a atividade que possibilita a compra dos armamentos necessários para a realização destas outras atividades, bem como também é este dinheiro que possibilitará a "compra" de um ou outro agente infiltrado nas instituições repressoras ou no executivo, que facilitam o trabalho desta empresa ao fazer vistas grossas - seja nos pontos de venda ou nas rotas de distribuição.

A princípio, uma organização criminosa só é "organizada" porque possui tais contatos. E é difícil saber até que ponto isto se dá mais através de "corrupção" do que de "extorsão" - mas como ocorrem na ilegalidade, uma coisa podemos deduzir: são todos estes contratos regidos pela violência. Consideramos que a categoria "traficante" serve muito mais para designar aquelas pessoas que estão nestas instituições (usando togas ou ternos e segurando canetas, etc), do que para os jovens que portam metralhadoras no morro - cujo ofício, aliás, não dura mais do que alguns anos.

Tentando pensar as raízes do problema da violência associada ao comércio de drogas, devemos colocar que este comércio só é extremamente lucrativo porque ele é ilegal: se houvessem regulamentações deste comércio, impedindo a adulteração das mercadorias para aumento dos lucros, ou taxações sobre a compra e a venda, este negócio não seria tão lucrativo quanto é. E, no caso de um programa efetivo de regulamentação do mercado por parte do Estado, este dinheiro deixaria de financiar o crime, para poder financiar quaisquer programas de prevenção sobre drogas realmente eficazes - ou para financiar políticas de inclusão social nas comunidades mais pobres, em cujas manifestações de explícita desigualdade social residem grande parte das causas desta violência que tanto se deseja combater.. ou estamos enganados? Qual têm sido a intervenção e o olhar mais frequente do Estado e da sociedade por estas comunidades, senão a intervenção da repressão e um olhar punitivo?

No morro e nas bocas da periferia estão os primeiros a morrer, e os que menos lucram - e a mesma relação hierárquica e vertical de desgraça, talvez, ocorra também com os policiais selecionados para estar na linha de frente, trocando tiros com estes jovens ao tentar vencer a tal "guerra às drogas". Tudo ocorre no morro, este curioso campo de batalha onde (dizem) parece ser o esconderijo dos verdadeiros inimigos da paz: "os traficantes"...

De qualquer forma, podemos observar que existe nítido interesse, por parte dos traficantes, de que as drogas listadas e tornadas ilícitas continuem proibidas e sofrendo repressão. A lei nº6368/76 sempre serviu, direta ou indiretamente, aos interesses daqueles que lucraram com ela. E, aqui é que a coisa fica perversa: este interesse para que as coisas continuem assim (ilegais e, portanto, lucrativas) está muito mais presente nos "traficantes de toga ou gravata" do que nos "traficantes jovens dos morros". Acreditamos que os jovens que trabalham no vapor, vendendo nas bocas-de-fumo e com uma vivência de poucos anos, não importando o seu cargo (aqueles jovens do documentário Falcão) simplesmente não têm como possuir todo o conhecimento do complexo processo de movimentações pelos sistemas bancário e financeiros internacionais e da lavagem de dinheiro envolvendo parte dos (segundo especialistas) mais de U$300 bilhões movimentados pelo tráfico, anualmente. Alguém já disse, aliás, que se o dinheiro da venda de drogas fosse para os "traficantes-do-morro", as vilas e favelas não estariam cheia de barracos, mas sim de mansões.

É importante pensarmos na estrutura deste negócio. Porém, não podemos cair na ingenuidade de achar que se trata de um sistema homogêneo: várias organizações disputam palmo a palmo estes territórios - tanto os de corrupção quanto os de venda - e sempre de uma forma violenta. Da mesma forma violenta, sofrerão extorsões, assim como o usuário também as sofre. Assim, nesta guerra interna que a lei permite, todo ano podem ocorrer as dezenas de propagandas sobre "desmantelamentos" das "maiores quadrilhas" do estado ou mesmo do país.. que estas somente darão lugares a outras. A competição entre os grupos e o inevitável papel da corrupção na esfera estatal faz com que muitos estudiosos comparem "os traficantes" de drogas com a hidra da mitologia, de cujas "cabeças eliminadas" sempre nascerão mais duas ou três.

Como muitos estudos apontam, também consideramos urgente a criação de um serviço de inteligência articulado entre os efetivos policiais e esferas do legislativo, enfocando estes canais corruptos do crime organizado. E, igualmente urgente, é elaborar uma política que retire dele sua principal fonte de renda (o comércio de drogas), assim diminuindo drasticamente o seu enorme poder de corrupção e de compra de armamentos - e impossibilitando a manutenção da estrutura já existente. Trata-se de atingir as estruturas destas associações mafiosas, principalmente no que tange às corrupções que as legitimam, e que tanto as transformam neste "problema assustador".

A (grande) parcela da sociedade que teme o crime organizado só o teme porque não consegue identificar, de fato, de onde emanam as suas ameaças. Quando dizemos que a questão pode ser estrutural, é porque sabemos que a queima de um ônibus, ou a apreensão de 50 usuários de cannabis, é muito mais fácil de enxergar (e de vender capas de jornal) do que aquela violência cotidiana causada pela desigualdade social e que tanto atinge os temidos "marginais". Ou, para lembrar melhor a origem deste termo: "aqueles que sempre estiveram à margem".

Este conjunto de ações, em médio prazo, poderiam constituir um modelo de atuação eficaz - e talvez até isto não seja o suficiente. Mas enquanto isso, sabemos que a sociedade está pagando por uma política de "redução de oferta e demanda de drogas" cuja desastrosas consequências a acompanham desde seu surgimento. É difícil aceitar que, diante de todo o seu fracasso histórico, os defensores desta "guerra às drogas" ainda queiram ampliar os mesmos métodos catastróficos de sempre - nos lembrando uma irônica expressão americana: "if the cure doesn't work, give more of the medicine".

Os 155 porto-alegrenses entrevistados na pesquisa sobre segurança urbana estavam corretos ao definir o comércio ilegal de drogas como sendo "uma das causas da violência" - ainda que o senso comum e a mídia coloquem o usuário de drogas como o culpado direto de toda esta arquitetura criminosa; quando na verdade está mais do que claro que as altas margens - e os destinos - deste lucro provém da ilegalidade da venda das drogas tornadas ilícitas, e não da venda em si.


E quem é o usuário de drogas, neste contexto?

O usuário de drogas, este sujeito cuja prática social é milenar, e presente em todas as sociedades, na nossa sociedade cumpre um papel de bode expiatório perfeito. Basta, para isto, observarmos casos como o de nossa manifestação cancelada devido à "má interpretação" de uma palavra, ou vendo ainda esta distorção em demais matérias como a do jornal "Fala Bom Fim" (Número 58, de maio de 2006), onde pode-se ler a inscrição "tráfico" sobre uma foto de policiais que na verdade estavam fazendo apreensão a usuários - e não a traficantes.

A partir de uma má-interpretação de nosso panfleto sobre a marcha, em uma matéria que nos apontava como um grupo de "apologia ao uso de drogas" sem ao menos divulgar o nosso blog (quem acessava por aqui dificilmente acharia motivos para estas alusões), diversos setores da sociedade (além da mídia) criaram um ambiente de pressão sobre as autoridades e aparelhos repressivos. O que era um ato legítimo e democrático, uma manifestação popular sobre políticas de drogas que envolvia tanto usuários quanto não-usuários, transformou-se arbitrariamente em ato criminoso - porque foi interpretado como um ato criminoso. No dia do manifesto cancelado, uma "operação pente-fino" parecia estar dizendo à sociedade: "está tudo sob controle: nada mudou, e estas pessoas continuarão sendo presas".

A pergunta é: até que ponto o usuário está "acendendo" a violência?

Muito mais do que apontar para o eventual despreparo de um ou outro jornalista ou editor, na verdade tudo isso nos demonstra o nível de desinformação e generalização a que chegamos na sociedade, de uma forma ampla - cujas origens já tentamos problematizar, na primeira parte destas reflexões.

É importante lembrar, para aqueles que pensam ser possível e desejável "eliminar" as drogas, que esta condenação não está recaindo sobre todo e qualquer usuário de drogas, mas somente em alguns deles. Em todas as sociedades sempre existiu condenação moral sobre o uso de algumas substâncias e permissão para outras. Hoje em dia muitas drogas são até incentivadas em propagandas como as de cerveja, sem que isso levante condenações morais daqueles que se dizem "contra as drogas". Sem falar no caso de alguns usuários de drogas culturalmente inseridas, como chimarrão e café, que não enxergam o quanto suas práticas, na verdade, não diferem em nada da prática de outros usuários.

Se a intenção é fazer um "combate às drogas", deveria-se antes disso ter consciência do quê são "drogas" e de como este é um conceito cujo sentido sempre mudou, em cada contexto social. Aliás, se existe por parte da "guerra às drogas" uma preocupação com as implicações sociais da questão, nos resta saber porquê é que seus defensores parecem justamente ignorar toda contribuição das ciências humanas.

Como alusão final destas comparações todas, deixamos um último exemplo:

O fato de que algumas drogas são vendidas em farmácias (que não por acaso se chamavam drogarias) também demonstra à sociedade que existe um uso de drogas prescritas e regulamentadas. Drogas (substâncias químicas), psicoativas ou não, que da mesma forma que as ilegais, também podem envolver casos de uso problemático, e também podem causar danos ao organismo de quem usa. Para impedir estes danos, ou para reduzí-los ao máximo, existem bulas, com informações claras, à disposição de todo e qualquer indivíduo que lidar com estas substâncias. As bulas trazem informação sem distinção alguma a quem vai ler - porque por trás disso está o reconhecimento de que, mesmo que esta pessoa esteja fazendo aquilo por conta própria, ela (e os que estão por perto) construirão sua relação com a substância a partir da informação disponível.

Contrariando todos os argumentos nos quais se baseiam os proibicionistas (quando atestam a urgência que há em proibir as drogas tornadas ilícitas), por trás dos dados científicos e dos avisos técnicos das bulas de remédio, está implícito o reconhecimento de que nenhum tipo de lei arbitrária ou fiscalização sobre os indivíduos poderá suplantar o livre-arbítrio destes ao manipularem e ressignificarem o seu próprio corpo, incluindo-se aí as suas concepções de saúde, de prazer, a livre manipulação de sua sexualidade e as substâncias que eles ingerem.

Em último caso, temos o dever de expôr as informações e a realidade ao máximo (reduzindo danos ao máximo), e contribuir para que os controles sociais (já existentes) possam fazer uso desta informação, assim como o fazem com as drogas lícitas.

Devemos adotar, como parâmetro, que jamais foi necessária a criação de toda uma política de drogas na qual a abordagem que fosse feita sobre tais substâncias servisse unicamente à violência - e à ignorância.

Reflexões sobre Drogas e Violência - parte um



Mediação de conflitos e Direitos Humanos


Integrantes do Princípio Ativo participaram, no sábado (20/05), da elaboração de propostas na 1º Conferência Municipal de Segurança Urbana de PoA. O objetivo deste evento foi o de recolher propostas e diretrizes, por parte da comunidade, visando a construção de políticas públicas relacionadas à segurança urbana, violência e temas derivados.

Partindo de alguns temas abordados lá, propomos estas reflexões..

O eixo escolhido pelo grupo foi o de "Políticas de prevenção e enfrentamento da violência e do crime: Mediação de conflitos e Direitos Humanos".

Algumas de nossas propostas se resumiam a trocas de conceitos mesmo, dentro dos textos, como por exemplo mudar a expressão "prevenção e tratamento à drogadição" para "conscientização e prevenção contra o uso abusivo ou indevido de drogas" - afinal, nem todo uso de drogas pressupõe problemas na vida do usuário.

Alguns indagaram: quando se fala nisso, não se estaria afirmando a existência um uso "devido" de drogas? A resposta é não: não se trata de afirmar que drogas devem ser usadas, mas sim de dizer que existem várias maneiras de usar uma substância, afins de reduzir possíveis danos - e a Redução de Danos é uma abordagem na promoção de saúde já consagrada mundialmente.

"Drogadição" é um termo ineficaz para explicar como se aborda uma relação problemática de abuso ou uso indevido. Esta relação requer todo um contexto favorável, onde se criará a expectativa entre o usuário e a substância química. E como nos supõe as bulas dos fármacos (inclusive as dos mais danosos), o organismo de cada pessoa responderá a cada substância de forma diferente. Não há como entender, portanto, certos discursos médicos "antidrogas" que apresentam algumas substâncias como sendo inevitavelmente agressivas a tod@s que com elas cruzarem contato - enquanto que as substâncias que eles prescrevem possuem contra-indicações, efeitos adversos e dosagens reguladas para cada organismo. O contexto do uso é psicológico e social: o "comportamento viciado" não se resume somente à mera ação de substâncias químicas sobre o corpo.

Comprovando a importância destes fatores, existem inúmeros "comportamentos viciados" com práticas que não envolvem a administração de substâncias químicas no organismo - o vício em jogos, por exemplo. A questão a ser prevenida, portanto, não é a mera prática em si (as substâncias químicas ou os jogos), mas principalmente a relação que é construída em torno desta prática por algumas pessoas.

PROERD

Uma das nossas propostas mais importantes na conferência se deu sobre a intenção original, que visava um estabelecimento definitivo do PROERD em Porto Alegre. O PROERD é um programa ultrapassado, importado do modelo americano de "war on drugs", no qual policiais são selecionados para dar "aulas contra o uso de drogas" nas escolas. Coloca-se a temática de uma forma repressiva e nada educativa através de palavras como "guerra" ou "combate", e desrespeitando a inteligência dos adolescentes com frases no estilo "just say no". Com isso, acabam por desinformá-los e desprepará-los para lidar com a realidade das drogas na sociedade, e incentivar opiniões moralistas e estigmatizadoras acerca de drogas e seus usuários, contribuindo para o aumento do preconceito e do tabu, bem como para um desentendimento desta prática social que possui significados muito diversos entre si. Grupos americanos que, como o nosso, contestam tal abordagem, evidenciam esta falha com um bom trocadilho: "just say know!".

Pois como nem todo usuário constrói relações problemáticas, um jovem que tenha passado pelo PROERD, ao encontrar com um usuário não problemático de cannabis, por exemplo, questionará tudo que ouviu, podendo achar inclusive que, já que cannabis não mata (conforme alertaram), é possível que ela "sempre faça bem à saúde". Ou seja, exclui-se a possibilidade de reduzir danos, e mesmo a de informar. Um repressor deixará a saúde em segundo plano, por enxergar no uso um crime.

Propomos uma revisão do PROERD como algo ultrapassado, substituindo-o por equipes multidisciplinares que passassem informações claras e não-repressivas sobre drogas nas escolas (compostas principalmente por trabalhadores da saúde, psicólogos e cientistas sociais, dentre outros profissionais), e assim promovendo a possibilidade de um diálogo franco e aberto sobre o tema.

A construção do temido "mundo das drogas" - e suas portas de entrada...

Outra adaptação do grupo foi acerca de políticas públicas que promovessem eventos culturais nas comunidades onde a venda de drogas é mais presente, visando maior inserção social dos jovens. Projetos como esse são imprescindíveis ao atuar nessa realidade, e bom exemplo disso é o Afroreggae.

A proposta original, no caso, estava escrita da seguinte forma: "criar um sistema de proteção à drogadição de jovens adolescentes, com o objetivo de evitar sua cooptação ao mundo das drogas".

Ora, mas o "mundo das drogas" é o mundo no qual vivemos há milênios.. Se queremos entender e lidar com esta questão, devemos encará-la como real, e não cair no engano de achar que podemos "evitar" entrar em contato com elas - nem que seja para falar sobre o assunto. Neste sentido é que certos argumentos "contra as drogas" acabam soando confusos: como não se consegue extinguir as drogas do mundo, muitos fingem que elas não existem - e mesmo se existem, dá a impressão de que não podemos dialogar com elas, a não ser para repudiá-las, reprimir a sua existência, deixar a realidade das drogas sob uma cortina de fumaça.

E é aqui cabe mais uma reflexão sobre a construção do conceito de "drogas".

Foto de matéria de Zero Hora sobre usuários de cannabis:
"cortina de fumaça" sobre as causas da violência.


Podemos lembrar do conceito de "dispositivo", para o filósofo M. Foucault, quando aplicado à difusão de idéias sobre drogas. Para o pensador francês, certos discursos e saberes, durante o processo no qual ganham um status de reconhecimento (científico, por exemplo), através deste reconhecimento começam a se articular e agir através de outras esferas sociais - e os agentes destas esferas variadas (a grande mídia, por exemplo) irão reproduzir as noções deste discurso.

Tal aproximação é lembrada pelo pesquisador Maurício Fiore (neip -USP), que analisa, por exemplo, o papel da mídia ao abordar o tema "drogas", agindo não só como reprodutora do discurso (cientificamente construído) da "guerra às drogas", como também como incitadora de toda uma forma de se entender a questão do uso de drogas na sociedade. Ou seja, ao mesmo tempo que se reprime a droga, através de conceitos como "combate", "guerra", "morte" e "vício", se cria com isso todo um ambiente de diálogo e percepção sobre o assunto que não têm como não ser "violento" - e "viciado". É de se perguntar até que ponto a instauração de uma abordagem de "guerra" ao assunto está contribuindo para um debate de um tema sobre o qual, geralmente, dizem que não se pode falar por ser "delicado demais"; como uma realidade que é tão horrível que é preferível omití-la - gerando assim tabus, preconceitos e generalizações que em nada contribuem para um melhor entendimento da questão.

Depois que algumas substâncias se tornaram ilícitas, no século passado, o termo "drogas" passou a sofrer alterações de significado, de forma direta e indireta, conscientemente ou não, por parte das pessoas que falam sobre isso.

Quando alguém reprime as drogas ilícitas, não está somente reprimindo-as, mas está também ajudando a construir uma idéia específica sobre "drogas ilícitas" - uma idéia que conferirá características às "drogas" justificando a sua repressão. Por exemplo: "drogas sempre matam", "drogas sempre levam à violência", etc. Em outras palavras, podemos dizer que a repressão necessita da idéia de droga como sendo "uma coisa sempre maligna e sempre perversa".

Esta concepção sobre "drogas" nasce com a proibição, legitimando-se no senso comum e reproduzindo-se tanto através de julgamentos subjetivos e morais quanto nas instituições. Isto nós podemos observar nas restrições e proibições impostas quanto ao interesse de pesquisadores sobre o tema, dentro das próprias universidades; ou na omissão, manipulação ou distorção feitas em determinadas pesquisas científicas sobre drogas.

O exemplo mais clássico dos desdobramentos desta distorção é a teoria da "porta de entrada": para alguns cientistas concluírem que "o uso de cannabis sempre leva ao uso de drogas pesadas" como heroína, ao invés de pesquisarem usuários de cannabis, pesquisaram usuários das drogas mais pesadas... Este método, de pesquisar um fato (ex: uso de heroína) e atribuir um dado isolado (histórico de uso de cannabis) como sendo um fator causal do objeto estudado, além de raso é intelectualmente desonesto. Caso fossem feitas pesquisas com usuários de cannabis, a "teoria" da porta de entrada seria reduzida a dado estatístico insignificante. Redutores de Danos no mundo todo vêm aplicando a cannabis inclusive como "porta de saída" para usuários de drogas pesadas como o crack, conforme terapias de substituição - e segundo estes trabalhadores da saúde elas vêm dando muitos resultados positivos.

Para fazer uma ironia, partindo de um método de pesquisas como o da "porta de entrada", pode-se chegar a conclusões absurdas, como por exemplo a de que "o fator causal das mortes de pessoas é o fato de elas terem nascido" - e a partir daí, defender a proibição da gravidez para reduzir a ocorrência de mortes. Pareceria absurdo demais - e na nossa opinião, as políticas antidrogas são tão absurdas quanto esta possa soar. Por seu fracasso ao reduzir demanda e consumo, e por seu fornecimento de uma lógica perversa na qual morrem muitos cidadãos - incluindo aqueles que a princípio não estariam ligados com uso, venda ou repressão, mas que acabam sendo alvo direto ou indireto desta guerra.

Sobre esta questão da violência, tentamos expôr alguma reflexão na outra parte do texto.

De resto, enquanto não enxergarmos o "outro lado" deste "mundo das drogas", aprendendo a observar a construção arbitrária destes conceitos "aterrorizantes" a partir da abordagem criada após a proibição, não poderemos entender a lógica que envolve a questão. Consideramos uma tarefa de todos os que se preocupam com a questão identificar e isolar os tabus que costumam rondar o tema, sob pena de nos afastarmos cada vez mais de um debate claro sobre uma questão urgente.

Acima de tudo, não se pode ter medo de falar sobre drogas - e o que propomos aqui, enquanto um grupo de estudos e pretenso movimento social, é o simples exercício da troca de idéias.

sábado, maio 20

A matança dos suspeitos

Já que não temos justiça, por que não nos contentar com a vingança?
Os meninos pardos e pobres da periferia estão aí pra isso mesmo.
Para morrer na lista dos suspeitos anônimos.
Para serem executados pela polícia ou pelos traficantes.

Vamos falar sério: alguém acredita que a rebelião do PCC foi controlada pela polícia de São Paulo? Vejamos: as autoridades apresentaram aos cidadãos evidências de que pelo menos uma parte da poderosa quadrilha do crime organizado foi desbaratada? O sigilo dos celulares que organizaram, de dentro das prisões, a onda de atos terroristas no estado de São Paulo, Paraná, Mato Grosso, etc, foi quebrado para revelar os nomes de quem trabalhou para Marcos Camacho, o Marcola, fora da cadeia? Qual foi o plano de inteligência posto em ação para debelar a investida do terror iniciada no último final de semana?
Alguém acredita que “voltamos à normalidade?” Ou se voltamos – pois a vida está mais ou menos com a mesma cara de antes, só um pouco mais envergonhada: de que normalidade se trata?
Uma normalidade vexada: uma vez constatada a rapidez com que os capitalistas selvagens do tráfico de drogas desestabilizaram o cotidiano do estado mais rico do Brasil, não dá mais para esconder o fato de que nossa precária tranqüilidade depende integralmente da tranqüilidade deles. Se os defensores da lei e da ordem não mexerem com seus negócios, eles não mexem conosco. Caso contrário, se seus interesses forem afetados, eles põem para funcionar imediatamente a rede de miseráveis a serviço do tráfico, conectada através de celulares autorizados pelo sistema carcerário (que outra explicação para a falta de bloqueadores e de detectores de metal nos presídios?) e toleradas pelo governador de plantão. No caso, o mesmo governador que, na hora do aperto, rejeitou trabalhar em colaboração com a Polícia Federal e, horas depois, negou ter feito acordos com os líderes do PCC. Segunda feira, nos telejornais, o governador Lembo nos fez recordar a retórica autoritária dos militares: nada a declarar além de “tudo tranqüilo, tudo sob controle”. E quanto aos oitenta mortos (hoje são 115), governador? Ah, aquilo. Bem, aquilo foi um drama, é claro. Lamento muito. Mas pertence ao passado.
A falta de transparência na conduta das autoridades e a desinformação proposital, que ajuda a semear o pânico na população, fazem parte das táticas autoritárias do atual governador de São Paulo. Quanto menos a sociedade souber a respeito da crise que nos afeta diretamente, melhor. Melhor para quem?
Na noite de segunda feira, quando os paulistanos em pânico tentavam voltar mais cedo para casa, vi-me parada ao lado de uma viatura policial, em um dos muitos congestionamentos que bloquearam a cidade. Olhei o homem à minha esquerda e, pela primeira vez na vida, solidarizei-me com um policial. Vi um homem humilde, desprotegido, assustado. Cumprimentou-me com um aceno conformado, como quem diz: fazer o que, não é? Pensei: ele sabe que está participando de uma farsa. Uma farsa que pode lhe custar a vida.
De repente entendi uma parte, pelo menos uma parte, da já habitual truculência da polícia brasileira: eles sabem que arriscam a vida em uma farsa. Não me refiro aos salários de fome que facilitam a corrupção entre bandidos e PMs. Refiro-me ao combate ao crime, à proteção da população, que são a própria razão de ser do trabalho dos policiais. Se até eu, que sou boba, percebi a farsa montada para que a polícia fingisse controlar o terror que se espalhava pela cidade enquanto as autoridades negociavam respeitosamente com Marcolas e Macarrões, imagino a situação do meu companheiro de engarrafamento. Imagino a falta total de sentido do exercício arriscado de sua profissão. Imagino o sentimento de falta de dignidade destes que têm licença para matar os pobres, mas sabem que não podem mexer com os interesses dos ricos, nem mesmo dos que estão trancados em presídios de segurança máxima e restrições mínimas.
Mas é preciso trabalhar, tocar a vida, exercer o trabalho sujo no qual não botam fé nenhuma. É preciso encontrar suspeitos, enfrentá-los a tiros, mostrar alguns cadáveres à sociedade. Satisfazer nossa necessidade de justiça com um teatro de vingança. A esquizofrenia da condição dos policiais militares foi revelada por algumas notícias de jornal: encapuzados como bandidos, executam inocentes sem razão alguma para a seguir, exibindo a farda, fingirem ter chegado a tempo de levar a vítima para o hospital.
Isso é o que alguns PMs fazem na periferia, nos bairros pobres onde também eles moram, onde o desamparo em relação à lei é mais antigo e mais radical do que nas regiões mais centrais da cidade. Nas ruas escuras das periferias os PMs cumprem seu dever de vingança e atiram no entregador de pizza. Atiram no menino que esperava a noiva no ponto de ônibus, ou nos anônimos que conversam desprevenidos, numa esquina qualquer. No motoboy que fugiu assustado – quem mandou fugir? Alguma ele fez... Não percebem – ou percebem? – que o arbítrio e a truculência com que tratam a população pobre contribui para o prestígio dos chefes do crime, que às vezes se oferecem às comunidades como única alternativa de proteção.
Assim a polícia vem “tranqüilizando” a cidade, ao apresentar um número de cadáveres “suspeitos” superior ao número de seus companheiros mortos pelo terrorismo do tráfico. Suspeitos que não terão nem ao menos a sorte do brasileiro Jean Charles, cuja morte será cobrada da polícia inglesa porque dela se espera que não execute sumariamente os cidadãos que aborda, por mais suspeitos que possam parecer. Não é o caso dos meninos daqui; no Brasil ninguém, a não ser os familiares das vítimas, reprova a polícia pelas execuções sumárias de centenas de “suspeitos”. Mas até mesmo os familiares têm medo de denunciar o arbítrio, temendo retaliações.
Aqui, achamos melhor fingir que os suspeitos eram perigosos, e seus assassinatos são condição na nossa segurança. Deixemos o Marcola em paz; ele só está cuidando de seus negócios. Negócios que, se legalizados, deixariam o campo de forças muito mais claro e menos violento (morre muito mais gente inocente na guerra do tráfico do que morreriam de overdose, se as drogas fossem liberadas – disso estou certa). Mas são negócios que, se legalizados, dariam muito menos lucro. O crime é que compensa.
Então ficamos assim: o estado negocia seus interesses com os do Marcola, um homem poderoso, fino, que lê Dante Alighieri e tem muito dinheiro. Deixa em paz os superiores do Marcola que vivem soltos por aí, no Congresso talvez, ou abrigados em algumas secretarias de governo. Deles, pelo menos, a população sabe o que pode e o que não pode esperar. E já que é preciso dar alguma satisfação à sociedade assustada, deixemos a polícia à vontade para matar suspeitos na calada da noite. Os policiais se arriscam tanto, coitados. Ganham tão pouco para servir à sociedade, e podem tão pouco contra os criminosos de verdade. Eles precisam acreditar em alguma coisa; precisam de alguma compensação. Já que não temos justiça, por que não nos contentar com a vingança? Os meninos pardos e pobres da periferia estão aí pra isso mesmo. Para morrer na lista dos suspeitos anônimos. Para serem executados pela polícia ou pelos traficantes. Para se viciarem em crack e se alistar nas fileiras dos soldadinhos do tráfico. Para sustentar nossa ilusão de que os bandidos estão nas favelas e de que do lado de cá, tudo está sob controle.

Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e poeta, é autora do livro "A mínima diferença - o masculino e o feminino na cultura".

quarta-feira, maio 17

Mas alcoolismo não é uma doença?

Os incidentes que culminaram na expulsão do jornalista americano William Rohter, há já algum tempo, devido à matéria publicada no The New York Times, trouxeram inúmeros elementos que podem ser analisados à luz de inúmeras teorias e concepções. Podemos analisar toda a novela por uma ótica construída a partir dos problemas da ética na imprensa, ou a partir das questões da diplomacia internacional, ou ainda com respeito ao universo dos Direitos Humanos, no que tange às questões relacionadas à liberdade de imprensa. Podemos olhar para a reação do governo, entendendo-a como um sintoma dentro de todo um contexto político extremamente complicado para o governo Lula no momento atual. Enfim, tudo isto, e muito mais, é possível. O exercício que vou construir aqui é, portanto, apenas um dos possíveis.
Para quem não lembra, refiro-me ao caso em que o presidente Lula foi acusado por um jornalista norte-americano como um bêbado, alcoólatra. Os escritos reverberaram por alguns dias na imprensa brasileira, e depois caíram no esquecimento. Durante aqueles dias, porém, vários políticos pronunciaram-se sobre o caso, de diferentes formas.
O que me chamou a atenção, principalmente devido à minha condição de trabalhador da saúde que atua diretamente com pessoas usuárias de substância psicoativas, foi o total desconhecimento e preconceito com o qual o problema do alcoolismo foi tratado nas inúmeras declarações feitas por homens públicos nos últimos dias, de todas as matrizes ideológicas, em todas as esferas do poder. Não vou me dedicar à crítica ao infeliz texto do jornalista americano, coberto de inverdades, pois não há nenhum ponto de crítica que eu possa abordar que já não o tenha sido, de forma muito mais eficiente, por inúmeros articulistas em todo o país. Mas me impressiona que, até agora, nenhuma única voz tenha se levantado contra as ofensas e as manifestações de ignorância e preconceito levadas a cabo por pessoas públicas de todo o país, no afã de defender o presidente e de atacar o jornalista.
Dentre as manifestações que se enquadram, houve aquelas que colocaram o uso (ou abuso) do álcool como uma questão de honra. O Ministro do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, disse: “Minha reação é de indignação. Atinge não só à pessoa honrada do presidente Lula, como também à instituição da Presidência da República e a toda a nação brasileira”. Já o vice-presidente José de Alencar disse que “Lula é um homem de bem, e todos nós, brasileiros, temos de nos revoltar. É um desrespeito ao nosso presidente”. O senador Arthur Virgílio, do PSDB, nos brinda com "Não é bom enveredar por este caminho, porque, se formos por aí, eu diria que a política externa dos Estados Unidos é bêbada. Eles promoveram dois Vietnãs em 50 anos”. E finalmente, como não bastasse às declarações feitas oralmente, no calor das discussões e da tribuna, sujeitas, portanto, a deslizes que talvez não possam ser tão duramente criticados, temos a pérola do preconceito em sua versão oficial, qual seja: a nota que acompanhou a decisão de cancelamento do visto do jornalista americano, assinada pelo ministro interino da justiça, Luis Paulo Teles Ferreira Barreto, que diz que tal decisão foi tomada “... em face de reportagem leviana, mentirosa e ofensiva à honra do presidente da República, com grave prejuízo à imagem do país no Exterior”. Todas as declarações aqui citadas foram pinçadas de matérias publicadas no Jornal Zero Hora, entre os dias dez e doze de maio. Tenho certeza de que se minha pesquisa fosse mais profunda, eu teria coletado um número muito maior de peças passíveis de uma análise a partir do escopo do preconceito e do desconhecimento com relação aos problemas relacionados ao uso de álcool.
Podemos ver, por exemplo, que a palavra honra aparece repetidas vezes. Diz Miguel Rosseto que a matéria atinge à “... pessoa honrada do presidente...”. Já na declaração do Ministro Interino da Justiça, vemos que a matéria publicada no The New York Times foi “... ofensiva à honra do presidente...”.
Ora; o que incomodou na matéria não foi o fato de que se afirma que o presidente Lula faz uso de bebidas alcoólicas. Isto moeda corrente, e ninguém, nem mesmo o presidente, faz segredo disto. O que incomodou foi o fato de que a matéria aponta para o fato de que o presidente teria problemas com o álcool. O próprio governo brasileiro, porém, através do Ministério da Saúde, considera o uso abusivo de álcool como um problema de saúde pública. O documento oficial “A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas”, na página dezessete, sob o sub-título “Alcoolismo: o Maior Problema de Saúde Pública”, diz que “... A reafirmação histórica do papel nocivo que o álcool nos oferece deu origem a uma gama extensa de respostas políticas para o enfrentamento dos problemas decorrentes de seu consumo, corroborando assim o fato concreto de que a magnitude da questão é enorme, no contexto da saúde pública mundial”. A própria Organização Mundial de Saúde inclui dentro de sua catalogação oficial o CID F10, caracterizado como “Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool”.
Se concordarmos todos, como o fazem OMS e Ministério da Saúde, sobre o alcoolismo ser um problema de saúde, por que então ligar a suspeita de que o presidente está doente com ataques à sua honra? Uma pessoa doente é uma pessoa sem honra? Ou ainda como pode ser visto na declaração do vice-presidente, que a afirma que “... Lula é um homem de bem...”, dando a entender que se ele ficar doente (ou seja, se vier a desenvolver problemas devido ao uso de álcool), ele deixará de ser uma pessoa de bem.
A pérola maior, no entanto, é a declaração do Senador Arthur Virgílio, dizendo que a política externa americana é “bêbada”, por ter promovido dois Vietnãs em cinqüenta anos. Segundo a declaração do Senador, portanto, podemos concluir que os alcoolistas são “bêbados” e intrinsecamente violentos. É isto ou estou enganado?
Não acredito que o Presidente Lula seja um alcoolista. Acredito, sim, que a matéria teve a clara intenção de desestabilizar o governo. O governo, por sua vez, ao agir com truculência, perdeu uma grande oportunidade de usufruir um dos raros momentos em que gozou, nos últimos tempos, de um apoio unânime no cenário político nacional e internacional, haja visto todas as declarações posteriores à publicação da matéria no The New York Times ofereceram apoio e solidariedade total ao presidente. Clara demonstração de inabilidade política. Para usar o jargão popular, “perdeu-se uma boa chance de se ficar calado”.
Não obstante, para nós que trabalhamos de uma forma ou de outra com a pessoa usuária de álcool e outras drogas, este momento foi extremamente rico, oferecendo uma boa oportunidade de sabermos exatamente quais as idéias que povoam o imaginário político nacional a respeito deste grave problema de saúde publica. Só para constar, é importante que se diga que de tudo o que se gasta com saúde mental no Brasil, sessenta por cento é consumido no tratamento de pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas. Desses sessenta por cento, mais de oitenta dizem respeito exclusivamente a problemas relacionados ao álcool. Não obstante este fato, o preconceito e a ignorância com relação a estes problemas ainda são imensos. Em depender das declarações de nossos homens públicos, estamos investindo estes recursos públicos na recuperação e tratamento de pessoas imorais e desonradas. Como Vinícius de Moraes ou Lima Barreto, por exemplo.