sábado, maio 20

A matança dos suspeitos

Já que não temos justiça, por que não nos contentar com a vingança?
Os meninos pardos e pobres da periferia estão aí pra isso mesmo.
Para morrer na lista dos suspeitos anônimos.
Para serem executados pela polícia ou pelos traficantes.

Vamos falar sério: alguém acredita que a rebelião do PCC foi controlada pela polícia de São Paulo? Vejamos: as autoridades apresentaram aos cidadãos evidências de que pelo menos uma parte da poderosa quadrilha do crime organizado foi desbaratada? O sigilo dos celulares que organizaram, de dentro das prisões, a onda de atos terroristas no estado de São Paulo, Paraná, Mato Grosso, etc, foi quebrado para revelar os nomes de quem trabalhou para Marcos Camacho, o Marcola, fora da cadeia? Qual foi o plano de inteligência posto em ação para debelar a investida do terror iniciada no último final de semana?
Alguém acredita que “voltamos à normalidade?” Ou se voltamos – pois a vida está mais ou menos com a mesma cara de antes, só um pouco mais envergonhada: de que normalidade se trata?
Uma normalidade vexada: uma vez constatada a rapidez com que os capitalistas selvagens do tráfico de drogas desestabilizaram o cotidiano do estado mais rico do Brasil, não dá mais para esconder o fato de que nossa precária tranqüilidade depende integralmente da tranqüilidade deles. Se os defensores da lei e da ordem não mexerem com seus negócios, eles não mexem conosco. Caso contrário, se seus interesses forem afetados, eles põem para funcionar imediatamente a rede de miseráveis a serviço do tráfico, conectada através de celulares autorizados pelo sistema carcerário (que outra explicação para a falta de bloqueadores e de detectores de metal nos presídios?) e toleradas pelo governador de plantão. No caso, o mesmo governador que, na hora do aperto, rejeitou trabalhar em colaboração com a Polícia Federal e, horas depois, negou ter feito acordos com os líderes do PCC. Segunda feira, nos telejornais, o governador Lembo nos fez recordar a retórica autoritária dos militares: nada a declarar além de “tudo tranqüilo, tudo sob controle”. E quanto aos oitenta mortos (hoje são 115), governador? Ah, aquilo. Bem, aquilo foi um drama, é claro. Lamento muito. Mas pertence ao passado.
A falta de transparência na conduta das autoridades e a desinformação proposital, que ajuda a semear o pânico na população, fazem parte das táticas autoritárias do atual governador de São Paulo. Quanto menos a sociedade souber a respeito da crise que nos afeta diretamente, melhor. Melhor para quem?
Na noite de segunda feira, quando os paulistanos em pânico tentavam voltar mais cedo para casa, vi-me parada ao lado de uma viatura policial, em um dos muitos congestionamentos que bloquearam a cidade. Olhei o homem à minha esquerda e, pela primeira vez na vida, solidarizei-me com um policial. Vi um homem humilde, desprotegido, assustado. Cumprimentou-me com um aceno conformado, como quem diz: fazer o que, não é? Pensei: ele sabe que está participando de uma farsa. Uma farsa que pode lhe custar a vida.
De repente entendi uma parte, pelo menos uma parte, da já habitual truculência da polícia brasileira: eles sabem que arriscam a vida em uma farsa. Não me refiro aos salários de fome que facilitam a corrupção entre bandidos e PMs. Refiro-me ao combate ao crime, à proteção da população, que são a própria razão de ser do trabalho dos policiais. Se até eu, que sou boba, percebi a farsa montada para que a polícia fingisse controlar o terror que se espalhava pela cidade enquanto as autoridades negociavam respeitosamente com Marcolas e Macarrões, imagino a situação do meu companheiro de engarrafamento. Imagino a falta total de sentido do exercício arriscado de sua profissão. Imagino o sentimento de falta de dignidade destes que têm licença para matar os pobres, mas sabem que não podem mexer com os interesses dos ricos, nem mesmo dos que estão trancados em presídios de segurança máxima e restrições mínimas.
Mas é preciso trabalhar, tocar a vida, exercer o trabalho sujo no qual não botam fé nenhuma. É preciso encontrar suspeitos, enfrentá-los a tiros, mostrar alguns cadáveres à sociedade. Satisfazer nossa necessidade de justiça com um teatro de vingança. A esquizofrenia da condição dos policiais militares foi revelada por algumas notícias de jornal: encapuzados como bandidos, executam inocentes sem razão alguma para a seguir, exibindo a farda, fingirem ter chegado a tempo de levar a vítima para o hospital.
Isso é o que alguns PMs fazem na periferia, nos bairros pobres onde também eles moram, onde o desamparo em relação à lei é mais antigo e mais radical do que nas regiões mais centrais da cidade. Nas ruas escuras das periferias os PMs cumprem seu dever de vingança e atiram no entregador de pizza. Atiram no menino que esperava a noiva no ponto de ônibus, ou nos anônimos que conversam desprevenidos, numa esquina qualquer. No motoboy que fugiu assustado – quem mandou fugir? Alguma ele fez... Não percebem – ou percebem? – que o arbítrio e a truculência com que tratam a população pobre contribui para o prestígio dos chefes do crime, que às vezes se oferecem às comunidades como única alternativa de proteção.
Assim a polícia vem “tranqüilizando” a cidade, ao apresentar um número de cadáveres “suspeitos” superior ao número de seus companheiros mortos pelo terrorismo do tráfico. Suspeitos que não terão nem ao menos a sorte do brasileiro Jean Charles, cuja morte será cobrada da polícia inglesa porque dela se espera que não execute sumariamente os cidadãos que aborda, por mais suspeitos que possam parecer. Não é o caso dos meninos daqui; no Brasil ninguém, a não ser os familiares das vítimas, reprova a polícia pelas execuções sumárias de centenas de “suspeitos”. Mas até mesmo os familiares têm medo de denunciar o arbítrio, temendo retaliações.
Aqui, achamos melhor fingir que os suspeitos eram perigosos, e seus assassinatos são condição na nossa segurança. Deixemos o Marcola em paz; ele só está cuidando de seus negócios. Negócios que, se legalizados, deixariam o campo de forças muito mais claro e menos violento (morre muito mais gente inocente na guerra do tráfico do que morreriam de overdose, se as drogas fossem liberadas – disso estou certa). Mas são negócios que, se legalizados, dariam muito menos lucro. O crime é que compensa.
Então ficamos assim: o estado negocia seus interesses com os do Marcola, um homem poderoso, fino, que lê Dante Alighieri e tem muito dinheiro. Deixa em paz os superiores do Marcola que vivem soltos por aí, no Congresso talvez, ou abrigados em algumas secretarias de governo. Deles, pelo menos, a população sabe o que pode e o que não pode esperar. E já que é preciso dar alguma satisfação à sociedade assustada, deixemos a polícia à vontade para matar suspeitos na calada da noite. Os policiais se arriscam tanto, coitados. Ganham tão pouco para servir à sociedade, e podem tão pouco contra os criminosos de verdade. Eles precisam acreditar em alguma coisa; precisam de alguma compensação. Já que não temos justiça, por que não nos contentar com a vingança? Os meninos pardos e pobres da periferia estão aí pra isso mesmo. Para morrer na lista dos suspeitos anônimos. Para serem executados pela polícia ou pelos traficantes. Para se viciarem em crack e se alistar nas fileiras dos soldadinhos do tráfico. Para sustentar nossa ilusão de que os bandidos estão nas favelas e de que do lado de cá, tudo está sob controle.

Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e poeta, é autora do livro "A mínima diferença - o masculino e o feminino na cultura".

quarta-feira, maio 17

Mas alcoolismo não é uma doença?

Os incidentes que culminaram na expulsão do jornalista americano William Rohter, há já algum tempo, devido à matéria publicada no The New York Times, trouxeram inúmeros elementos que podem ser analisados à luz de inúmeras teorias e concepções. Podemos analisar toda a novela por uma ótica construída a partir dos problemas da ética na imprensa, ou a partir das questões da diplomacia internacional, ou ainda com respeito ao universo dos Direitos Humanos, no que tange às questões relacionadas à liberdade de imprensa. Podemos olhar para a reação do governo, entendendo-a como um sintoma dentro de todo um contexto político extremamente complicado para o governo Lula no momento atual. Enfim, tudo isto, e muito mais, é possível. O exercício que vou construir aqui é, portanto, apenas um dos possíveis.
Para quem não lembra, refiro-me ao caso em que o presidente Lula foi acusado por um jornalista norte-americano como um bêbado, alcoólatra. Os escritos reverberaram por alguns dias na imprensa brasileira, e depois caíram no esquecimento. Durante aqueles dias, porém, vários políticos pronunciaram-se sobre o caso, de diferentes formas.
O que me chamou a atenção, principalmente devido à minha condição de trabalhador da saúde que atua diretamente com pessoas usuárias de substância psicoativas, foi o total desconhecimento e preconceito com o qual o problema do alcoolismo foi tratado nas inúmeras declarações feitas por homens públicos nos últimos dias, de todas as matrizes ideológicas, em todas as esferas do poder. Não vou me dedicar à crítica ao infeliz texto do jornalista americano, coberto de inverdades, pois não há nenhum ponto de crítica que eu possa abordar que já não o tenha sido, de forma muito mais eficiente, por inúmeros articulistas em todo o país. Mas me impressiona que, até agora, nenhuma única voz tenha se levantado contra as ofensas e as manifestações de ignorância e preconceito levadas a cabo por pessoas públicas de todo o país, no afã de defender o presidente e de atacar o jornalista.
Dentre as manifestações que se enquadram, houve aquelas que colocaram o uso (ou abuso) do álcool como uma questão de honra. O Ministro do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, disse: “Minha reação é de indignação. Atinge não só à pessoa honrada do presidente Lula, como também à instituição da Presidência da República e a toda a nação brasileira”. Já o vice-presidente José de Alencar disse que “Lula é um homem de bem, e todos nós, brasileiros, temos de nos revoltar. É um desrespeito ao nosso presidente”. O senador Arthur Virgílio, do PSDB, nos brinda com "Não é bom enveredar por este caminho, porque, se formos por aí, eu diria que a política externa dos Estados Unidos é bêbada. Eles promoveram dois Vietnãs em 50 anos”. E finalmente, como não bastasse às declarações feitas oralmente, no calor das discussões e da tribuna, sujeitas, portanto, a deslizes que talvez não possam ser tão duramente criticados, temos a pérola do preconceito em sua versão oficial, qual seja: a nota que acompanhou a decisão de cancelamento do visto do jornalista americano, assinada pelo ministro interino da justiça, Luis Paulo Teles Ferreira Barreto, que diz que tal decisão foi tomada “... em face de reportagem leviana, mentirosa e ofensiva à honra do presidente da República, com grave prejuízo à imagem do país no Exterior”. Todas as declarações aqui citadas foram pinçadas de matérias publicadas no Jornal Zero Hora, entre os dias dez e doze de maio. Tenho certeza de que se minha pesquisa fosse mais profunda, eu teria coletado um número muito maior de peças passíveis de uma análise a partir do escopo do preconceito e do desconhecimento com relação aos problemas relacionados ao uso de álcool.
Podemos ver, por exemplo, que a palavra honra aparece repetidas vezes. Diz Miguel Rosseto que a matéria atinge à “... pessoa honrada do presidente...”. Já na declaração do Ministro Interino da Justiça, vemos que a matéria publicada no The New York Times foi “... ofensiva à honra do presidente...”.
Ora; o que incomodou na matéria não foi o fato de que se afirma que o presidente Lula faz uso de bebidas alcoólicas. Isto moeda corrente, e ninguém, nem mesmo o presidente, faz segredo disto. O que incomodou foi o fato de que a matéria aponta para o fato de que o presidente teria problemas com o álcool. O próprio governo brasileiro, porém, através do Ministério da Saúde, considera o uso abusivo de álcool como um problema de saúde pública. O documento oficial “A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas”, na página dezessete, sob o sub-título “Alcoolismo: o Maior Problema de Saúde Pública”, diz que “... A reafirmação histórica do papel nocivo que o álcool nos oferece deu origem a uma gama extensa de respostas políticas para o enfrentamento dos problemas decorrentes de seu consumo, corroborando assim o fato concreto de que a magnitude da questão é enorme, no contexto da saúde pública mundial”. A própria Organização Mundial de Saúde inclui dentro de sua catalogação oficial o CID F10, caracterizado como “Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool”.
Se concordarmos todos, como o fazem OMS e Ministério da Saúde, sobre o alcoolismo ser um problema de saúde, por que então ligar a suspeita de que o presidente está doente com ataques à sua honra? Uma pessoa doente é uma pessoa sem honra? Ou ainda como pode ser visto na declaração do vice-presidente, que a afirma que “... Lula é um homem de bem...”, dando a entender que se ele ficar doente (ou seja, se vier a desenvolver problemas devido ao uso de álcool), ele deixará de ser uma pessoa de bem.
A pérola maior, no entanto, é a declaração do Senador Arthur Virgílio, dizendo que a política externa americana é “bêbada”, por ter promovido dois Vietnãs em cinqüenta anos. Segundo a declaração do Senador, portanto, podemos concluir que os alcoolistas são “bêbados” e intrinsecamente violentos. É isto ou estou enganado?
Não acredito que o Presidente Lula seja um alcoolista. Acredito, sim, que a matéria teve a clara intenção de desestabilizar o governo. O governo, por sua vez, ao agir com truculência, perdeu uma grande oportunidade de usufruir um dos raros momentos em que gozou, nos últimos tempos, de um apoio unânime no cenário político nacional e internacional, haja visto todas as declarações posteriores à publicação da matéria no The New York Times ofereceram apoio e solidariedade total ao presidente. Clara demonstração de inabilidade política. Para usar o jargão popular, “perdeu-se uma boa chance de se ficar calado”.
Não obstante, para nós que trabalhamos de uma forma ou de outra com a pessoa usuária de álcool e outras drogas, este momento foi extremamente rico, oferecendo uma boa oportunidade de sabermos exatamente quais as idéias que povoam o imaginário político nacional a respeito deste grave problema de saúde publica. Só para constar, é importante que se diga que de tudo o que se gasta com saúde mental no Brasil, sessenta por cento é consumido no tratamento de pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas. Desses sessenta por cento, mais de oitenta dizem respeito exclusivamente a problemas relacionados ao álcool. Não obstante este fato, o preconceito e a ignorância com relação a estes problemas ainda são imensos. Em depender das declarações de nossos homens públicos, estamos investindo estes recursos públicos na recuperação e tratamento de pessoas imorais e desonradas. Como Vinícius de Moraes ou Lima Barreto, por exemplo.