sábado, junho 17

Comunicação realizada no 3º Seminário Gaúcho de Redução de Danos - Porto Alegre/2006

Bom dia.
Meu nome é Tiago Ribeiro e estou aqui representando o Coletivo Princípio Ativo – por uma nova política de drogas. Como essa é uma mesa sobre política de drogas, em um seminário de redução de danos, pensei que a melhor contribuição que eu poderia dar, como antiproibicionista e como acadêmico de filosofia, interessado em antropologia, é apresentar uma reflexão que nos possibilite compreender melhor os fundamentos simbólicos da proibição ao uso de drogas, enquanto uma instituição da nossa sociedade e da nossa cultura.

Tomarei por ponto de partida que a atual política de drogas não funciona. Ela gera mais violência, discriminação, desrespeito aos direitos humanos, enfim, gera muito mais danos do que as próprias drogas. Em um seminário sobre redução de danos é fundamental que essa idéia esteja sempre presente. Ressalto, também, que penso a redução de danos de uma forma ampliada, já que acredito que processos que se desenrolam em diversas outras esferas interferem na saúde, gerando danos a esta. A proibição ao uso de drogas, no meu entendimento, constitui, ela mesma, um dano a ser reduzido, dano este muito mais preocupante do que os danos diretamente causados pelo uso das substâncias proibidas.

Mesmo em alguns setores mais conservadores da sociedade já se está chegando à conclusão de que essa política não está funcionando. Mas por que, então, quando buscamos outras soluções, a descriminalização e a regulamentação das relações de produção, distribuição e consumo de drogas, não são consideradas seriamente como alternativas? Nós, do Princípio Ativo, em maio desse ano, pretendíamos realizar uma manifestação, em Porto Alegre, por uma nova política de drogas. Em panfletos e pela Internet apresentamos toda uma argumentação lógica e racional solicitando a instauração de uma esfera pública que viabilizasse um debate mais qualificado sobre política de drogas e as alternativas possíveis. No entanto, houve uma reação absolutamente desproporcional, irracional e raivosa. A mídia tratou a questão de uma maneira rasa, estimulando um clima de tensão e confronto. Tal abordagem por parte da imprensa, que apresentava a manifestação como uma defesa ao uso de drogas, conduziu a uma situação em que fomos obrigados a cancelar a manifestação para evitar todo tipo de violência que estava se anunciando.

A pergunta que fica é: por que, mesmo quando o antiproibicionismo se apresenta por meio de um discurso responsável, ponderado e, principalmente, argumentativo, não se consegue estabelecer linhas de diálogo? Uma interpretação possível pra isso é que nós, seres humanos, seres culturais, formamos e somos formados por sistemas simbólicos que classificam e atribuem sentido às nossas experiências e, no caso do uso de drogas, o que se institucionalizou como pensamento oficial e dominante é o de que as drogas são responsáveis diretas por grande parte dos problemas da humanidade.

No entanto, esse sentido oficial não é o único, porque as pessoas não recebem passivamente a interpretação que a sua cultura dá para as coisas. As pessoas reinterpretam todos os códigos culturais da sociedade onde vivem. Se não fosse assim, eu não estaria aqui falando contra a proibição. Então o que acontece é que se cria toda uma diversidade de significados em relação ao uso de drogas e, muitas vezes, esses significados entram em choque com aquele sentido que é materializado nas ações institucionais. Essa diversidade contrasta fortemente, também, com uma idéia corrente, principalmente entre alguns médicos e profissionais de saúde (e freqüentemente repetida pela grande mídia e por grande parte do discurso institucionalizado), segundo a qual o uso de substâncias psicoativas pode ser compreendido, em seus efeitos e sentidos, a partir do estudo de características objetivas e presentes na própria constituição química dessas drogas. Estas características seriam as determinantes do caráter da experiência do usuário.[1]

Assim, nessa comunicação, proponho uma reflexão acerca de alguns elementos que poderiam operar na construção dessa diversidade de sentidos. Parto do entendimento de que esses múltiplos significados provêm mais de contextos culturais do que de uma característica intrínseca às substâncias. Minha abordagem pretende, ainda, compreender porque as políticas de drogas proibitivas e repressivas se mantêm mesmo diante de tantas evidências do seu fracasso e de que elas, se pretendendo solução a um problema social do uso de drogas, na prática funcionam como agravamento desse problema. Apesar da proibição e da repressão, o consumo de drogas só aumenta a cada ano e a violência gerada pelo tráfico, produto da proibição, cada vez mais atinge a toda sociedade. Mas a sociedade, acossada por essa violência gerada pela proibição, aponta para as drogas e seus usuários como os grandes culpados desses problemas. Por que as pessoas continuam apostando em uma estratégia que já demonstrou ser ineficiente?

Os discursos, as definições e os sentidos atribuídos ao uso de psicoativos, no meu entendimento, dizem mais respeito ao esquema simbólico no interior do qual se produziram do que às substâncias elas mesmas enquanto objetos do mundo físico. Então, se “cada esquema cultural particular cria as possibilidades de referência material para pessoas de uma dada sociedade”[2], sendo que essas referências não são as únicas possíveis, podemos compreender como os mesmos psicotrópicos, utilizados em contextos simbólicos diversos, ensejam significados também diversos e mesmo “efeitos” diferentes em seus usuários. De outro modo, como explicar a inexistência de distúrbios sociais em contextos de uso religioso, místico, sagrado, terapêutico ou produtor de laço social de psicoativos como, por exemplo, a maconha ou a ayahuasca, sendo que, em nossa sociedade, tais distúrbios são sempre apontados pelos discursos médicos reproduzidos pelo senso comum, como inerentemente ligados ao consumo de drogas, pois advindos de propensões motivadas nos usuários por propriedades químicas dessas substâncias?

O antropólogo Edward MacRae faz referência a diversos casos de pessoas que, usando drogas de modo desregrado em nossa sociedade, uma vez em contato com o uso ritualizado do chá de ayahuasca, foram assumindo, no contexto de uma significação religiosa para o consumo da substância, padrões de uso diversos daqueles habitualmente relacionados ao uso de psicoativos. Por causa dessa mudança de contexto simbólico, essas pessoas passaram a controlar o uso e assumiram estilos de vida austeros, não-problemáticos e saudáveis. Assim, continuaram usando uma droga, porém, pela atribuição de outro sentido a esse uso, não realizaram o estereótipo do viciado e do dependente que degrada sua vida.

Reflexões como essa nos levam a pensar no poder desses sistemas de classificação dos objetos e fenômenos da vida prática. Quer dizer, podemos pensar em como a posição relativa que o uso de drogas ocupa no sistema de classificação da nossa sociedade contribui decisivamente na constituição de situações de violência e no desencadeamento de processos conflituosos: a partir de tal perspectiva nos é possível considerar que o significado atribuído às práticas de uso de drogas interfere profunda e inevitavelmente na consolidação da violência inerentemente atribuída ao “mundo das drogas”, fazendo do estudo dos contextos socioculturais algo fundamental na compreensão desse fenômeno.

Assim, por exemplo, quando se fala em uso de maconha, se faz referência a uma série de efeitos mais ou menos objetivos que esta droga causaria. Contudo, essa diversidade de efeitos é extremamente ampla e não se restringe àqueles que são referidos como “os” efeitos do uso dessa substância, dificultando mesmo o apontamento daqueles que seriam os efeitos “principais”. Se somarmos a isso o poder de determinação contido nos múltiplos significados possíveis para essa prática (poder que interfere diretamente sobre a experiência psicoativa que o usuário terá), chegamos a um quadro em que buscar os sentidos dos usos de drogas em análises químicas das substâncias reduz drasticamente a nossa real compreensão acerca do fenômeno.

Cada cultura, então, ao tomar cada substância como objeto de reflexão e, conseqüentemente, classificação, centra seu foco e promove, como qualidade definidora do fenômeno, alguns de seus efeitos, a saber, expressamente aqueles que melhor se inserem no sistema classificatório já existente (construído, em nossa sociedade, a partir dos pareceres médicos e das análises bioquímicas). É esse sistema que vai operar como gerador de sentido para os objetos e práticas do mundo das ações, construindo a si mesmo sobre uma base lógica onde cada elemento se define em relação aos elementos já assentados e conceitualizados, que servem de fundamento para o pensamento. Se lembrarmos, então, que os primeiros discursos que assumiram um caráter estrutural acerca do uso de drogas foram os discursos médicos, poderemos conceber razoavelmente o modo como esses discursos se adequaram coerentemente a concepções anteriores (se fundamentando em uma idéia de Ciência enquanto conhecimento neutro e objetivo)[3] e como eles vieram a influenciar em concepções futuras (inclusive, nas políticas que conduziram à criminalização daquilo que, até então, era compreendido como um hábito de negros e pobres de regiões afastadas).

Pensemos agora no que acontece com uma droga classificada, em nossa sociedade, na categoria “medicamento”. Pode ser, quem sabe, uma droga potente como o Prozac, ou mesmo a aspirina. A ingestão de substâncias como essas também produz uma série de “efeitos” no organismo. Um antidepressivo como o Remeron gera uma sonolência e uma afetação dos sentidos e capacidades motoras bastante comparáveis a certos quadros atribuídos ao uso de maconha. No entanto, as propriedades destacadas no discurso oficial acerca das drogas psiquiátricas são aquelas que melhor corroboram com a categoria na qual tais drogas estão inseridas, a categoria de medicamentos. As propriedades contraditórias com a classificação estabelecida são entendidas, no esquema simbólico, como “efeitos colaterais”, ou seja, como “acidentes” e não como “essência” da coisa. Voltando à maconha, a sua classificação como “droga” e tudo que isso implica em nossa sociedade, impede que a atenção se ponha em outras de suas propriedades, notadamente as medicinais (tradicionalmente e mesmo já cientificamente comprovadas em diversos casos).

Apresento um exemplo ainda mais corriqueiro: o chimarrão. No Rio Grande do Sul o consumo dessa substância é tradicional, estando inserido, no esquema simbólico constituído na região, como um laço social entre indivíduos e grupos. Ora, a erva-mate apresenta propriedades estimulantes que alteram funções fisiológicas do organismo humano (o que a caracterizaria, segundo a definição canônica da Organização Mundial da Saúde, como uma droga)[4] mas estas propriedades não são evidenciadas, na constituição cultural do significado do consumo do chimarrão, como propriedades definidoras do “ser” dessa prática, de modo que tomar chimarrão é, no sistema simbólico da cultura tradicional gaúcha, um costume, um laço social perfeitamente inserido e relacionado logicamente com outros conteúdos e práticas constituintes desse universo simbólico.

Exemplos semelhantes abundam. Destaco o caso típico do vinho. Trata-se de uma bebida alcoólica, uma droga, portanto. No entanto, possui um uso religioso tradicional, tendo papel importante nos ritos cristãos. Em nossa sociedade, o uso do vinho nesses rituais não é classificado como um uso de droga e tampouco abundam registros de abuso da substância nesse contexto ritual. Afinal, opera aí, novamente, um código cultural, um sistema de significados que ultrapassa meras análises químicas e que compreende o uso em contexto ritual do vinho como um aspecto vinculado à categoria do sagrado e não a uma simples alteração da consciência. Se pensarmos no uso do haxixe em comunidades dos Himalaias[5]e no uso da maconha em comunidades jamaicanas específicas[6]e em tribos do interior do Maranhão, poderemos verificar como estes usos estão, do mesmo modo, coerentemente posicionados nos esquemas simbólicos dessas populações, não constituindo, por não significarem, objetos associados a conflitos e rupturas no interior desses grupos.

Segundo o antropólogo Anthony Henman, “o contexto em que a maconha é mais consumida [entre os índios tenetehara] ocorre durante a realização de trabalhos que exigem esforços físicos. Acredita-se que a planta tem efeito estimulante, ajudando na execução das tarefas pesadas associadas às derrubadas e plantações”.[7] À essa classificação do uso da maconha, tão diversa da concepção dominante na nossa cultura, se soma a significação conferida, por este mesmo grupo indígena, ao uso do tabaco em seus rituais de xamanismo: “o estado de transe – uma autêntica narcose, com o pajé caído duro no chão por um período de dez a vinte minutos – é atingido unicamente pelo uso do tabaco, sendo a fumaça engolida para o estômago, acompanhada de violentos tragos e gesticulações”.[8]

Trata-se de exemplos contundentes de assimilação do uso de uma substância psicoativa a um esquema de significação culturalmente construído e bastante diverso daquele que a nossa sociedade estabeleceu (me refiro aqui, obviamente, ao esquema institucionalizado e dominante no nível discursivo).

Pensando na nossa sociedade, podemos afirmar que é o lugar que as drogas ocupam em nosso sistema simbólico que faz com que seu uso esteja associado, necessariamente, a doenças, crimes e mortes. Não há nada nas próprias substâncias que leve a isso. Se houvesse, em todas as sociedades onde há uso de drogas, essas conduziriam as pessoas às doenças, aos crimes e às mortes. Já vimos, contudo, não ser esse o caso. Deste modo, a ruína de vidas saudáveis, devido ao uso de drogas, pode ocorrer mais porque as pessoas tendem a realizar as prescrições culturais, do que por poderes que as substâncias teriam de levar as pessoas a agir desta ou daquela forma. A espiral de conflitos familiares, contravenções, violências e sofrimentos estaria, assim, já anunciada a partir da significação culturalmente dada a tais conteúdos. A profecia tende sempre a se auto-efetivar.

O significado do uso de drogas nas sociedades ocidentais atuais se constituiu, então, a partir de uma representação seletiva dos significados possíveis para a compreensão dessa prática, tomada como objeto de reflexão e classificação. Nos processos de representação seletiva um significado é posto em primeiro plano em relação a todos os outros significados possíveis. Assim, a significação do uso das drogas tornadas ilícitas enquanto uma prática ofensiva, tanto ao organismo do usuário quanto ao organismo social, significação esta que encontra seu apoio e sua história nos pareceres médicos do início do século XX, se sobrepõe, em nossa cultura, às significações que se referem a esse uso como uma prática terapêutica, lúdica, mística, introspectiva ou espiritual, caracterizando um processo de classificação no qual a aposta em certos atributos do objeto ou da prática, e a desconsideração “científica”, entre aspas, de outros desses atributos, cristaliza como verdade uma possibilidade. Mas, como esses significados postos em primeiro plano se refletem nas práticas dos atores sociais, pois as orientam, eles acabam desencadeando uma série de conseqüências como, por exemplo, a estigmatização e marginalização dos usuários, a potencialização de conflitos, além de uma série de arbitrariedades e corrupções (internações compulsórias, pagamentos de subornos a policiais, etc). Há, além disso, uma marcante incoerência que se estabelece quando os esquemas simbólicos se concretizam nas práticas sociais e se evidencia a promoção de sentidos diversos no que se refere a outros psicoativos como, por exemplo, as bebidas alcoólicas.

Mas então, se a cultura tem, a partir da operação que faz de sistemas de classificação produtores de significados, um poder definidor das concepções dos indivíduos e grupos que a constituem, como pode o uso de drogas ilícitas ser tão disseminado no seio de sociedades que o classificam como nocivo, perturbador da ordem e gerador de violência e, fundamentalmente, como pode se produzir, no interior dessas mesmas sociedades, discursos tão variados e mesmo antagônicos ou contrários aos condicionamentos culturais?

As classificações culturalmente construídas podem, ou não, ser definidoras da experiência dos indivíduos. Quando as pessoas colocam em ação seus conceitos e categorias, estes podem contradizer as experiências que elas têm. Pode não se comprovar, na prática, aquilo que os discursos oficiais afirmam sobre as drogas, seus usos e usuários. Ora, sabemos que é a minoria dos usuários que poderia ser enquadrada como “dependentes”. Assim, me valendo de algumas assertivas apropriadas pelo senso comum dos discursos “especializados” sobre uso de drogas, o consumo de maconha pode, “surpreendentemente”, não significar “a porta de entrada para o uso de outras drogas”, o uso de psicoativos pode, na prática, não constituir “um caminho sem volta” e, pasmem, o uso de drogas pode não ser, intrinsecamente, uma prática geradora de violência, conflitos sociais e familiares e, portanto, um flagelo em bases objetivas.

Os usos de drogas, podem ser, ao contrário, exemplos de práticas religiosas, recreativas, socializadoras, a droga significada como força, paz, tranqüilidade, bem-estar... uma série de significados “inesperados”, que se constituem a partir das experiências de sujeitos e grupos que ressignificam conteúdos específicos no interior de um sistema simbólico convencionalizado. No entanto, os sujeitos não engendram significados a partir do nada, de modo que é o substrato de sentido conferido pela cultura que lhes concede o universo de sentidos possíveis na significação dos objetos e práticas. Assim, significados não convencionais para usos de drogas tornadas ilícitas em nossa sociedade poderiam estar se constituindo a partir da observação de usos convencionais de outras substâncias (bebidas, remédios, etc). Da mesma forma, parece anunciar-se no seio da nossa cultura o modelo para uma nova política de drogas: a atual regulamentação do tabaco, que é racional, socialmente responsável e, ao mesmo tempo, respeitadora dos direitos e da liberdade individual, sem, no entanto, gerar os problemas que uma proibição total geram.

Uma vez isso compreendido, começa a se desfazer a idéia de que legislações proibitivas e práticas repressivas possam “sanar o mal” do uso de drogas. Primeiro porque a compreensão dos modos pelos quais interpretações que se pretendem verdades são construídas no interior de sistemas simbólicos de classificação coloca em xeque a própria idéia de uso de drogas como prática intrinsecamente causadora de conflitos e violências e, segundo, porque essa mesma compreensão da construção de sentidos permite vislumbrar a simplificação que se faz quando se classifica como crime ou doença uma prática de múltiplos significados.

O problema maior, contudo, parece residir principalmente nas conseqüências dessa criminalização do uso e da venda de certas drogas: a constituição das organizações criminosas que se financiam e se armam a partir do comércio das substâncias proscritas, gerando uma série de danos sociais que ultrapassam em muito os danos que se podem relacionar diretamente ao consumo de psicotrópicos. Como aponta Alba Zaluar, “o crime organizado desenvolveu-se nos atuais níveis porque tais práticas socialmente aceitáveis [o jogo, as drogas e a diversão] e valorizadas foram proibidas por força da lei, possibilitando níveis inigualáveis de lucros a quem se dispõe a negociar com esses bens”. Assim, “as taxas de crimes violentos aumentaram em todos os países em que o combate à droga apela para a repressão, inclusive no Brasil”[9], e a grande questão está em “analisar como a criminalização de um hábito ou gosto individual – ou seja, uma ação arbitrária e ilegítima do Estado [...] aprofunda a revolta e as carreiras criminosas dos jovens usuários de drogas”.[10]

Então, no nosso sistema social, a legitimidade conferida ao Estado para coibir o uso dessas substâncias pode ser entendida como uma legitimidade para a imposição de um significado convencional a todos aqueles que, por ventura, sejam flagrados “significando diferentemente” o uso de drogas. Trata-se, creio, de uma conclusão de certo modo patética, mas que parece seguir logicamente da análise até aqui realizada e que se confirma empiricamente a partir da total incompreensão demonstrada, até então, por grande parte das autoridades constituídas acerca das especificidades de significados dos usos de drogas e das formas pelas quais esses significados se constroem, no âmbito cultural e no âmbito individual, pela constante confrontação de conceitos e classificações simbólicas com práticas, vivências e interesses constitutivos dos esquemas de vida dos indivíduos e dos grupos no interior de uma sociedade.

Deste modo, o significado do uso de drogas tem sido expresso nas sociedades ocidentais atuais como efeito direto de propriedades objetivas das substâncias em questão, ignorando o valor relativo do sentido dado pela sociedade ao fenômeno. Isso acontece devido à existência de um discurso revestido de autoridade pela cultura oficial, discurso este que, respaldado pelas instituições mantenedoras, reprodutoras e divulgadoras da ordem cultural, e pretensamente objetivo e verdadeiro (portanto, “legítimo”), constitui, no entanto, tão somente uma das possibilidades de significação conferidas aos sujeitos por esta mesma ordem. Como escreve o antropólogo Gilberto Velho,
“a própria noção de tóxico e o conceito de drogas são altamente problemáticos e, dependendo do critério e da posição do investigador, podem abarcar desde a heroína ao papo-de-anjo. [...] existem n maneiras de utilizar as substâncias, em função de variáveis culturais e sociológicas. Estas não só se somam, como complexificam as distinções que possam ser registradas ao nível da análise bioquímica”.[11]

Nesta mesma linha segue o sociólogo Carlos Geraldo Espinheira quando afirma, enfaticamente, que “as drogas não têm o mesmo efeito para pessoas socialmente diferentes!”[12]e, depois, acrescenta que “o uso de drogas, como estilo ou ethos, depende mais do usuário do que da droga que usa, e isso significa que não se pode atribuir à droga uma autonomia em relação ao indivíduo ou mesmo ao contexto social, mas, ao contrário, perceber o indivíduo e o seu contexto para compreender o tempo e os espaços das drogas em suas vidas”.[13]

De minha parte, penso que, ao desconsiderar essas especificidades e essa pluralidade de sentidos e contextos envolvidos na constituição do que, afinal, significa o uso de drogas, se atendo tão somente aos significados institucionalizados a partir de uma perspectiva particular, a perspectiva médico-legal, as políticas públicas criminalizantes da produção, da distribuição e do uso das drogas tornadas ilícitas operam no sentido de fortalecer a cadeia de violências, conflitos, arbitrariedades e corrupções diversas nos sistemas policial e judiciário, afastando-se sensivelmente daquele que deveria ser o papel do Estado e contribuindo decisivamente no agravamento de um problema que é, em última instância, fruto de uma construção particular das sociedades contemporâneas. Como escreve Baratta, “a história das drogas, anterior à economia capitalista é, com raras exceções, um aspecto normal da história da cultura, da religião e da vida cotidiana em toda sociedade: não é a história de um ‘problema’”.[14]

Assim, uma política de drogas deve ser pensada tendo em vista que uma grande parte dos usuários não compartilha dos significados institucionalizados desse uso. São pessoas que não representam as drogas como um problema e que desenvolvem padrões não-problemáticos de uso. Uma legislação mais inteligente deve levar esses outros sentidos em conta porque, se assim não o fizer, sempre que se deparar com um caso de uso não-problemático de drogas (e há muitos), a aplicação da lei sobre esse caso representará a construção do problema social, que antes não havia.

Trata-se, então, a meu ver, de buscar, o Estado e a sociedade, no que se refere à abordagem dessa questão por meio de políticas públicas, a partir de uma compreensão mais apurada acerca do universo de sentidos envolvidos nos fenômenos do uso de drogas, a construção de modelos mais adequados que dêem conta dessa complexidade e, a partir do abandono de abordagens moralizantes e repressivas (que só maximizam conflitos e incompreensões diversas), se adotem formas de regulamentação mais condizentes com a multiplicidade de significados com que opera o ser humano na constituição do vasto espectro da sua liberdade existencial.


[1] FIORE, Maurício. Algumas reflexões a respeito dos discursos médicos sobre uso de “drogas”. Caxambu, 2002. Disponível em http://www.neip.info/downloads/anpocs.pdf, acessado em 19 de dezembro de 2005.
[2] Idem. p.184.
[3] CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[4] A OMS define “droga” como qualquer “substância que, quando administrada ou consumida por um ser vivo, modifica uma ou mais de suas funções, com exceção daquelas substâncias necessárias para a manutenção da saúde normal”. OMS apud FIORE, Maurício. Tensões entre o biológico e o social nas controvérsias médicas sobre o uso de “drogas”. Caxambu, 2004. Disponível em http://www.neip.info/downloads/t_mau1.pdf, acessado em 19 de dezembro de 2005.
[5] OLMO, Helena. Charas dos Himalaias. Cânhamo – revista de cultura canábica. Lisboa, número 3, p.20-29, out./nov. 2004.
[6] GONÇALVES, Pedro. Jamaica: como o ar que se respira. Cânhamo – revista de cultura canábica. Lisboa, número 2, p.28-35, ago./set. 2004.
[7] HENMAN, Anthony. “A guerra às drogas é uma guerra etnocida”. In: HENMAN, Anthony e PESSOA JR, Osvaldo (orgs). Op. Cit. p.103.
[8] Idem. p.104.
[9] ZALUAR, Alba. “A criminalização das drogas e o reencantamento do mal”. In: ZALUAR, Alba (org). Op. Cit. p.106.
[10] Idem. p.123.
[11] VELHO, Gilberto. “A dimensão cultural e política dos mundos das drogas”. In: ZALUAR, Alba (org). Op. Cit. p.24.
[12] ESPINHEIRA, Gey. “Os tempos e os espaços das drogas”. In: TAVARES, Luiz Alberto (coord.). Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, 2004. p.12.
[13] Idem. p.19.
[14] BARATTA, Alessandro. Op. Cit. p.39.

2 comentários:

Unknown disse...

muito bom, colega. excelente mesmo!
seguinte: não tem uma turma aí contigo que lide com vídeo? que tal registrar estas movimentações de vocês com imagens e áudio? algumas entrevistas, ou comunicações resumidas destes manifestos que vcs estão produzindo...
valeuzão!
elias.

Anônimo disse...

Salve guerreio! Excelente artigo... Conte comigo se precisar de algo em São Paulo...

abcs,