domingo, dezembro 23

Relato do seminário Drogas e Sociedade

Tudo certo para o evento, trâmites burocráticos vencidos - e com duas semanas de antecedência, a casa (Assembléia Legislativa) diz que não poderia mais ceder o espaço, pois a presidência havia solicitado o auditório. O resultado: só se conseguiu um novo lugar cinco dias antes do evento. Como houve um feriado no meio, a divulgação só foi para rua dois dias antes. No dia do evento, não houve nenhuma atividade no auditório da assembléia.

Diante disto, o que poderia ter sido evento de grande capacidade de mobilização tornou-se um dia de formação para os militantes do Princípio Ativo e alguns parceiros. Passaram pelo seminário Fátima Machado, redutora de danos, secretária da ABORDA (Associação Brasileira de Redutores e Redutoras de Danos) e presidente da RUDE (Rede de Usuários de Drogas/RS); Tiago Ribeiro, bacharel em Filosofia e membro do Princípio Ativo, o professor de economia da federal gaúcha, Luis Miranda; Andrea Domanico, redutora de danos e psicóloga clínica com doutorado em Antropologia; o ex-deputado federal Marcos Rolim e o jurista Salo de Carvalho.

Perdeu-se em importância política, mas ganhou-se na riqueza dos debates, que tornaram-se mais dinâmicos.

Manhã

Mesa 1: A Fabricação do usuário e suas conseqüências

Tiago Ribeiro e Fátima Machado trouxeram aos presentes vários questionamentos, apontando principalmente para a construção daquilo a que se convencionou chamar de "usuário de drogas". A partir de um texto que tratava da análise das diversas significações sobre o fenômeno dos usos de drogas, Tiago sugeriu ao grupo a impermanência da dita figura "usuário de drogas". Ora sagradas, ora profanas; ora criminosas ou prescritas, as práticas dos usos delineiam o imaginário sobre a figura de seus protagonistas, através das culturas, dependendo da forma com a qual a sociedade as encara. Assim, as experimentações sobre os usos acabam divergindo amplamente, quando tomamos os usos de drogas lícitas e ilícitas, embora sejam todas elas igualmente experiências ligadas ao subjetivo, aos desejos. O uso de uma mesma droga não surtirá os mesmos "efeitos" em culturas diferentes, já que, pela diferenciação de representações sociais, os indivíduos constróem relações a partir do imaginário existente sobre a droga. Tiago lembra que o mesmo tabaco, significado (dentre outras coisas) como um aliviador de tensões e ânsias, nos contextos urbanos, nas tribos indígenas pesquisadas pelo antropólogo Anthony Henmann é significado como agente de estados narcóticos, sendo utilizado em ritos xamânicos.

Em meio a esta exposição, direcionou-se um debate: qual seria o papel da legislação sobre drogas, ao conceber significados a priori sobre os efeitos das mesmas, conferindo status de permissividade a algumas e ilegalidade a outras?

Fátima Machado, abordando de forma muito particular sua experiência na construção de estratégias de Redução de Danos junto a pessoas que usam drogas, expôs os destinos que a legalidade ou ilegalidade confere a estas pessoas. Segundo Fátima, a Redução de Danos é antes de tudo uma forma de enfrentamento e protagonismo, no momento em que a própria pessoa que usa as drogas tornadas ilícitas ajuda a construir uma estratégia de promoção de saúde, de cuidado de si.

O enfrentamento pelo qual esta política passou - e ainda passa, após anos de conquistas - é uma questão moral, mas é também um reflexo do descaso colocado àqueles que optam em usar as drogas tornadas ilícitas. O processo de construção da Rede de Usuários de Drogas, no RS, relatado por Fátima, nasceu a partir de seu envolvimento para o empoderamento das pessoas que usam drogas, quanto aos seus direitos à saúde. Através da RUDE/RS, Fátima conquistou representatividade no Conselho Estadual de Entorpecentes, fazendo questão de pautar, nesta arena, uma construção de políticas de drogas concebidas por e para pessoas que usam drogas.

Na segunda temática de debates, havíamos escolhido o tema Tráfico e Trabalho para problematizar as viabilidades da tão falada "legalização". Começando pelo óbvio: o que é legalização? Como esta palavra é interpretada, quando falamos sobre o controle de drogas, e como podemos aprender destas interpretações um ponto inicial para a construção destas políticas? Luiz Miranda, professor do departamento de Economia da federal gaúcha, conduziu uma ótima discussão sobre aspectos ainda pouco levados em conta nos debates sobre políticas de drogas. Traçou um breve histórico das relações sociais e comerciais envolvidas na produção e nos usos de drogas, nas diferentes políticas reguladoras, enfatizando a crítica à utopia de esperarmos um "mundo sem drogas".

Mesa 2: Tráfico e Trabalho

O debate foi bastante propositivo. Discutiram-se aspectos de políticas de regulamentação para a maconha e para a cocaína. Na opinião de Miranda, o principal em uma política de regulamentação é que esta esteja ligada a esforços para conter a apropriação deste mercado por grandes indústrias. Outro aspecto que pautou a conversa foi justamente a necessidade de tratar as políticas de drogas como políticas de saúde. Discutiram-se algumas propostas caso-a-caso: maconha e cocaína.

Com relação à maconha, como o processo de cultivo voltado ao uso abrange técnicas acessíveis, abrem-se as questões não somente do porte de determinada quantidade da droga, mas também da liberação do plantio para uso próprio. A figura do grower (jardineiro), porém, de certa forma concorreria como de um produtor em larga escala (comentou-se a respeito do interesse da Souza Cruz no cigarro de maconha). Mas se a experiência que temos com o álcool e o tabaco são problemáticas (propagandas, adulterações, lobby excessivo), como podemos aprender com estes erros, fazendo com que as drogas não se tornem produtos? Em outras palavras, como fazer para que não sejam objetos de lucro, e acabem movimentando centros de poder diretamente envolvidos? A idéia sugerida por Miranda é interessante: pode-se liberar o plantio para uso próprio. Mas, além disso, uma política de regulamentação para maconha poderá ser voltada ao incentivo de cooperativas comunitárias de plantio, reforçando o comércio local e contendo o surgimento de monopólios cobrando taxas mais elevadas à indústrias que pensem numa distribuição em âmbitos estaduais ou nacionais.



Falamos também sobre a cocaína. Droga que assim como a maconha já foi vendida em farmácia (mesmo tendo um uso recreativo não tão demonizado como nos dias de hoje), proibida em 1914 pelo Ato de Narcóticos Harrison, a cocaína teve seu uso medicinal contestado formalmente. Os usos auto-medicamentosos e recreativos seguiram-se, à revelia da repressão, sendo a cocaína contraposta como uma experiência terapêutica menos perigosa que as anfetaminas (surgidas a partir de 1932), e figurando novamente nos holofotes da mídia de massa, a partir de meados da década de 70.

Estudar a entrada da Cocaína no Brasil é ver de perto o porquê e como a proibição é causadora direta da violência urbana hoje associada à droga. Negócio muito mais rentável ao mercado que a maconha, as grandes quantias de dinheiro que giravam em torno da Cocaína criaram uma necessidade da institucionalização do crime: para dar conta de um negócio tão lucrativo, a rede da ilegalidade teve que criar métodos consistentes de atuação - corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de armas são três itens a serem levados em conta. Esta necessidade de institucionalização destas redes ilegais não existia, antes da proibição. E, a todas estas, as pessoas que eram presas eram os "falcões", a mão-de-obra barata do tráfico, e também as pessoas que usam drogas, principalmente as menos favorecidas economicamente - como é ainda hoje.

Pensar aquilo que chamamos de legalização em termos práticos, nos levou a pensar sobre a gestão, e suas implicações éticas deste mercado. Concordamos que a proibição gera males sociais, além de não ser funcional no âmbito da Saúde. Através da preocupação em não ver a droga como um produto qualquer, abriram-se outras questões como a própria imagem que a legalização teria. Uma política destas deverá surgir de uma forma muito bem articulada, no que diz respeito à informação sobre drogas, medidas de Redução de Danos (RD), capacitação da rede de Saúde Mental. Estas articulações não são utópicas: já estão em curso de acordo com as conquistas da RD e da Reforma Psiquiátrica. Uma nova lei de drogas seria um novo e importante passo para que as políticas de saúde se aproximem da realidade, e para que a Atenção em Saúde se torne cada vez mais humanizada.

Obs.: (Continuaremos com a parte da tarde: Mesa 3 - Uma história das políticas de drogas e Mesa 4: Drogas, Direitos Humanos e Segurança Pública).

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