domingo, abril 19

Crack no RS: porque o "plano de enfrentamento" gaúcho é uma vergonha.


Pesquisa de opinião revela a incoerência das profecias.

No assunto do uso problemático de drogas, o grau de despreparo a que as políticas de Saúde gaúchas estão sendo pensadas deveria ser mais evidente. Só não é porque, como a parcela da sociedade gaúcha que se preocupa com isso não têm informação de qualidade disponível, qualquer idéia mais cretina surge como a salvação. Falamos aqui principalmente dos usos problemáticos de Crack. Vedete da mídia alarmista, os casos a ele atribuídos são inacreditáveis, e hoje vemos quilos de notícias fáceis valendo-se do pânico moral.

Não é que não tenhamos idéias e alternativas à altura do problema. Pelo contrário. O problema é que estamos dando chance e voz de comando para as pessoas idéias erradas.

Quais são as pessoas, hoje, que respondem às políticas de "enfrentamento" destas situações de abuso? Fazemos questão de comentar aqui uma delas: Doutor Sérgio de Paula Ramos, psiquiatra que coordena a unidade de dependência química do Hospital Mãe de Deus. Um profissional que sempre atendeu basicamente a neuroses burguesas, sem experiência clínica no assunto - e isto foi ele mesmo quem disse, num Encontro sobre Crack promovido pela Secretaria Estadual de Saúde (estávamos lá porque uma parte do grupo também trabalha na área da Saúde). No dito encontro, vimos um profissional que teve toda sua trajetória construída a partir da experiência clínica privada, sem aproximações com o que rola na maioria das comunidades (onde o que pega não é só Saúde, é falta de assistência social, de emprego digno e de mais uma porrada de coisas). Não falamos por falar. É um profissional que pouco ou nada ajudou a participar pela consolidação de um Sistema Único de Saúde, aberto aos cidadãos. Fato: no dito Encontro mencionado, Doutor Sérgio falou muito na "urgência de pensar trabalhos em rede", sem citar nenhuma das diretrizes do SUS, conquistadas (e praticadas por trabalhadores da saúde de verdade) há mais de vinte anos, tratando-se exatamente disso. Fosse pelos interesses hegemônicos da má psiquiatria, o SUS não teria se tornado realidade. Mas os medíocres continuam atacando essas conquistas, nem que seja pela omissão de suas alternativas. Hoje, Doutor Sérgio é um dos porta-vozes na defesa da abertura de leitos psiquiátricos - com uma pequena ajuda dos amigos da RBS, e vai além: acha que temos de "segurar o touro pelo chifre antes". Em outras palavras, planeja a extinção das drogas do planeta - curiosamente, o mesmo planeta em que gente graúda, e não-visada pela polícia, enriquece com a dobradinha do tráfico (drogas e armas), justamente devido à ilicitude.

Não estamos aqui pra "fazer a caveira" de ninguém. Nosso debate sempre foi sobre políticas públicas. Perguntamos, portanto: como é que profissionais despreparados e desinformados podem ter a voz e a vez? Queremos ir além da Lei de Murphy, se possível.

Você sabia que a internação em um leito psiquiátrico, via Ordem Judicial, em hospitais da Região Metropolitana, podem custar até R$ 6.000 pro contribuinte? E esse é o preço de uma internação de quinze dias. Alguns dizem que o custo é bem maior. Internações podem ser (e são), algumas vezes, necessárias. Contra a vontade de quem está usando drogas (via Ordem Judicial isso acontece direto), não adianta nada, enquanto terapia. A não ser como intervenção pontual, de pessoas se expondo em risco - mas desintoxicação não é plano terapêutico, é um procedimento emergencial. Pra sermos mais didáticos: uma coisa é botar gesso, outra bem diferente, e tão ou mais necessária, é fazer a fisioterapia. No caso, é dar voz à pessoa dizer como sente sua vida na comunidade. O plano dos leitos, obviamente, está longe disso. Depois do leito, qual a continuidade? Como as pessoas que usam drogas (com ou sem leitos) estão trabalhando suas relações de abuso com as drogas?

a) dopadas de fármacos
b) com a polícia
c) afastadas por seis meses ou mais da comunidade onde vivem e para onde haverão de voltar.

Ah, essa experiência o pessoal da clínica burguesa não têm: o acolhimento da demanda COM as pessoas, e não PARA as pessoas. Dá trabalho demais, ter que ouvir e intervir no cotidiano real, na vida vivida... Na entrevista, Doutor Sérgio diz que há dois anos não havia curado ninguém, mas que hoje, curou meia dúzia. É como se as pessoas diretamente envolvidas não tivessem nada a ver com a recuperação delas mesmas. Quer dizer que, além de profeta, este Doutor, assim como outros maus exemplos de sua categoria, parece considerar-se um enviado de Deus.

A ausência total de um acolhimento junto à comunidade é gritante. Este seria o lugar dos serviços substitutivos, incluindo os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (os CAPS-AD) , por uma continuidade do vínculo na promoção de saúde, na vida vivida. Perto da importância disso, os leitos são meros depósitos rotativos. Todos os serviços minimamente ligados à vida vivida, à promoção de saúde (que diga-se de passagem, não só não atendem somente "fraturas", como também podem prevení-las), estão sendo destruídos aos poucos. Se continuar assim, os depósitos ficarão cada vez mais lotados. Isso é o que queremos como "enfrentamento sério" da questão? Parece que sim: se gente doente dá dinheiro, gente doente internada, mais ainda.

Tem gente que faz questão de defender isso como a alternativa principal. Se dinheiro é investimento, investimento é poder... E quem controla as terapêuticas em leitos psiquiátricos? Os psiquiatras. Bem, não todos - alguns. Geralmente os piores - que são os que sobrevivem à pressão do mercado da Saúde, por uma Psiquiatria cada vez mais medíocre.

Não queremos ser simplistas. Mas a única coisa que sabemos, e qualquer um vê, é que no nosso "plano de enfrentamento", não temos nada de SUS, nada de Reforma, nada de trabalhadores nas comunidades, ali, dialogando com a realidade cotidiana. O foco no leito só serve pra quem vê a dependência química como um negócio qualquer. E num negócio qualquer, bem, é melhor ter leitos cheios do que leitos vazios. Eles geram investimentos, que por sua vez, geram poder.

Doutor Sérgio, lendo o futuro dos gaúchos
a partir de seu plano de enfrentamento ao Crack.


Doutor Sérgio, psiquiatra, é xodó da mídia. Em quase toda matéria sobre drogas na ZH, por exemplo, tá lá uma opinião do cara. Mas não vamos falar no vazio. Pra comentar essas coisas, não há nada como exemplos concretos.

Zero Hora já havia dado a oportunidade ao Doutor Sérgio para falar sobre políticas de drogas (assunto mais abrangente), encerrando a reportagem, momento no qual demonstrou ser um dos psiquiatras que sobrevivem tranquilamente na pressão por mediocridade. Agora, depois dos crimes de mães matando filhos (noticiados como se o crack fosse "culpado" de todo o mal existente no universo), dão uma segunda tentativa, oferecendo uma entrevista inteira.

Já vimos (no mesmo post anterior) como o Doutor Sérgio defende a guerra civil, embasado em teorias superadas. Aqui, ele continua defendendo a "erradicação do álcool" - para "combater o crack". ZH pergunta: "O que tem a ver com álcool?". E o Doutor usa sua arma predileta: a teoria da escalada.

"Pergunte para a família dele qual a primeira droga que ele ingeriu e com que idade", diz, confiante. E segue, como que sem perder o fôlego:

"Com 35 anos de trabalho nesta área, nunca tratei um paciente, independentemente de crack, cocaína, maconha, que a primeira droga na vida dele não tenha sido álcool. Se você consegue adiar a iniciação ao álcool, reduz a taxa de alcoolismo e o envolvimento com outras drogas. Criaria um cenário urbano mais clean, menos droga. O segundo foco é a Lei Seca, cuja fiscalização deve ser retomada. Acho que poderá haver até um resgate da cidadania."

Eis a omissão criminosa de todo um trabalho sério desenvolvido pelas pessoas que pesquisam e trabalham na área da Saúde. 35 anos de trabalho: dentro de uma bolha? O mesmo cara que defende a repressão e ignora a Saúde Coletiva, está ousando falar em "resgate da cidadania". Pois é um cara desses que tá puxando o projeto "educativo" sobre drogas, no estado do Rio Grande do Sul. Seria surreal, se não fosse real.

Pra vocês não pensarem que estamos na onda errada, deixamos
aqui uma homenagem ao Gentileza. Um profeta de respeito.

3 comentários:

Anônimo disse...

Sou admiradora do coletivo de voces. Mas essa matéria me pareceu sem informações. De um lado está certa por criticar esse senhor que não é nada feliz em suas colocações. Mas, por outro lado, peca quando diz que ele é responsável pelo "projeto educativo" no RS. Existem muitas pessoas trabalhando nesse tema efetivamente no nosso Estado. Voces citaram somente a parte de tratamento. tem ainda os que trabalham com prevenção, com redução de danos.... Se informem mais sobre os trabalhos do Ministério Público, sobre a Secretaria da Saúde do RS, sobre o trabalho coletivo da Assembléia Legislativa, sobre as ações da sociedade civil... Eu sou de uma ong e tenho frequentado todas as reuniões nesses órgãos a respeito do tema. E, posso garantir pra vocês que não é o Dr. Sérgio que manda. Aliás, nunca vi ele nessas discussões.
Abraços,
Ana Paula

Princípio Ativo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Princípio Ativo disse...

Valeu a contribuição Ana Paula... Tentamos também acompanhar dentro do possível estes espaços formais de discussão, e sabemos que tem gente boa trabalhando. O problema delas (nosso?) é fazer frente diante desse lobby todo, e da busca por respostas rápidas, e do engessamento, e da grande má vontade da Gestão (estamos sem consultores em RD há algum tempo).

Este texto "nasceu" quando soubemos do posicionamento de nossa gestão estadual, que destinou recursos para um plano do Hospital Mãe de Deus como sendo "A" estratégia no setor da Educação sobre Atenção em Saúde para álcool e outras drogas em algumas regiões do estado, ignorando por completo o próprio posicionamento do Conselho Estadual de Saúde, que havia votado numa outra estratégia bem diferente, proposta e defendida pela Escola de Saúde Pública. Esse fato foi trazido à tona na última reunião da Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembléia Legislativa, puxada pelo pessoal do Fórum Gaúcho de Saúde Mental.

Um abraço, continue contribuindo por aqui!