Sempre que se fala no tema “drogas”, logo vêm à tona discursos inflamados, invariavelmente centrados nesta ou naquela propriedade desta ou daquela substância. Rapidamente a discussão perde o foco, perdendo-se, também, a possibilidade de aprofundamento em um tema talvez ainda mais importante: políticas de drogas.
Falar em políticas de drogas não é falar sobre as drogas em si, seus efeitos, seus modos e contextos de uso. Não se trata, pois, de falar sobre os malefícios que o uso de drogas pode causar e nem de falar sobre se, idealmente, sonhamos com uma sociedade onde ninguém faça uso de substâncias psicoativas ou, ao contrário, se achamos que algumas drogas nos oferecem possibilidades de benefícios e não apenas malefícios. É claro que tais enfoques são, também, muito importantes e devem ser levados em conta. No entanto, parece que eles já têm seu espaço garantido e que a sociedade, em grande parte, já tomou consciência desses debates. O que falta é que esta mesma sociedade assuma um papel crítico e protagonize a discussão sobre que tipo de políticas devem ser empregadas na abordagem da questão complexa do uso de drogas. Ou seja, trata-se, aqui, a partir de uma leitura do que a realidade nos indica, de pensarmos acerca das formas pelas quais o Estado deve se envolver nessa questão.
Inicialmente, é preciso partir, nessa discussão, do fato incontestável de que seres humanos sempre usaram, continuam a usar e, tudo indica, futuramente também continuarão a fazer uso de uma vasta gama de substâncias que, muito diferentes entre si, guardam em comum a capacidade de agir sobre nosso organismo. Isto posto, trata-se de pensar sobre como o Estado deve se colocar, diante dessa realidade, no sentido de cumprir com sua razão de ser, ou seja, como ele deve agir para preservar, ao máximo, o bem comum.
As drogas que hoje conhecemos como de uso ilícito foram proibidas na primeira metade do século XX. A justificativa dessa medida foi a preservação da saúde das pessoas. Esperava-se, com a aplicação de penas àqueles que fizessem uso ou comerciassem essas substâncias, reduzir o seu consumo e, conseqüentemente, os danos às pessoas e à sociedade. Mais de meio século depois, nos confrontamos com a paradoxal situação de ver o consumo dessas drogas atingir níveis inimagináveis quando de sua proscrição, de modo que nos é lícito afirmar que nunca se usou tantas drogas quanto após a proibição. Mas os problemas e os paradoxos não param por aí. Com o aumento da demanda e a proibição da constituição de um mercado legal, no seio de uma sociedade capitalista, formou-se uma rede de comércio ilícito desses produtos, de modo a garantir sua chegada aos consumidores. Essa rede, operando sem qualquer forma de controle por parte do Estado, passou a regulamentar suas atividades por conta própria, dando origem a um processo de violência crescente nas grandes cidades brasileiras: na ausência de regulação oficial, partiu-se para a lei da selva, problema que foi agravado pela entrada das forças de segurança oficiais nesse combate, na inútil tentativa de impedir, pela via repressiva, que alguém que quer vender algo e alguém que quer comprar esse algo fizessem o negócio. Violência, como sempre acontece, gerou mais violência e o resultado disso está nos jornais, na televisão e no contundente recado do rapper MV Bill: milhares de mortes, absolutamente desnecessárias, de jovens sem qualquer perspectiva ou amparo de uma sociedade que lhes virou as costas. Milhares de mortes, é bom que se diga, ligadas diretamente à violência do tráfico e da repressão policial e não ao uso daquelas drogas que, lá no começo do século XX, foram proibidas para evitar mortes desnecessárias entre os nossos jovens. E aqui chegamos, novamente, ao ponto de partida: políticas de drogas.
O objetivo de uma política pública é o bem público, mas a atual política de drogas causou danos maiores do que os que haviam antes de sua implementação. Se as drogas são perigosas e capazes de arruinar vidas (e são), as conseqüências, aqui enunciadas, de sua proibição, têm arruinado muito mais vidas, destruído muito mais sonhos e produzido muito mais danos à sociedade. A violência saiu dos guetos e nos olha a todos na cara. Nos intimida e paralisa. É preciso reconhecer o fracasso da proibição e da repressão ao uso de drogas. Além de todo esse quadro de violência absurda, a criminalização dessas condutas afasta dos profissionais de saúde os usuários que se tornaram dependentes, ampliando em muito os danos que as drogas, por si só, já causam. E isso sem falar no desperdício de dinheiro público que é a manutenção das estratégias repressivas, enquanto faltam recursos para tratamento digno e de qualidade aos dependentes (é bom lembrar, sempre, que a repressão, além de ineficaz, é muito mais dispendiosa do que a prevenção).
Por tudo isso, e por inúmeras outras razões, faz-se necessário engolir os preconceitos e assumir a discussão de uma nova política de drogas, que seja efetivamente capaz de reduzir o consumo através de abordagens educativas e preventivas, evitando todos os danos que a proibição e a repressão causam. Não se trata de liberar indiscriminadamente a venda e o uso dessas substâncias, mas de regulamentar suas relações de produção, distribuição e consumo, de modo que seja possível determinar exatamente quem vende, quem compra, onde, em que quantidade, quais produtos e, é claro, para onde vai o dinheiro movimentado nesse comércio. É possível a construção de um modelo menos nocivo do que o atual. É possível reduzir a violência, controlar o consumo de drogas, arrecadar fundos para educação e prevenção e diminuir a corrupção que os recursos do tráfico engendram no poder público. A aplicação de uma nova política de drogas, com essas diretrizes, em conjunto com projetos de distribuição de renda e geração de oportunidades é capaz, se não de construir aquela sociedade dos nossos sonhos, ao menos de reduzir, em muito, os danos causados por décadas de políticas equivocadas.
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