quarta-feira, maio 24

Reflexões sobre Drogas e Violência - parte um



Mediação de conflitos e Direitos Humanos


Integrantes do Princípio Ativo participaram, no sábado (20/05), da elaboração de propostas na 1º Conferência Municipal de Segurança Urbana de PoA. O objetivo deste evento foi o de recolher propostas e diretrizes, por parte da comunidade, visando a construção de políticas públicas relacionadas à segurança urbana, violência e temas derivados.

Partindo de alguns temas abordados lá, propomos estas reflexões..

O eixo escolhido pelo grupo foi o de "Políticas de prevenção e enfrentamento da violência e do crime: Mediação de conflitos e Direitos Humanos".

Algumas de nossas propostas se resumiam a trocas de conceitos mesmo, dentro dos textos, como por exemplo mudar a expressão "prevenção e tratamento à drogadição" para "conscientização e prevenção contra o uso abusivo ou indevido de drogas" - afinal, nem todo uso de drogas pressupõe problemas na vida do usuário.

Alguns indagaram: quando se fala nisso, não se estaria afirmando a existência um uso "devido" de drogas? A resposta é não: não se trata de afirmar que drogas devem ser usadas, mas sim de dizer que existem várias maneiras de usar uma substância, afins de reduzir possíveis danos - e a Redução de Danos é uma abordagem na promoção de saúde já consagrada mundialmente.

"Drogadição" é um termo ineficaz para explicar como se aborda uma relação problemática de abuso ou uso indevido. Esta relação requer todo um contexto favorável, onde se criará a expectativa entre o usuário e a substância química. E como nos supõe as bulas dos fármacos (inclusive as dos mais danosos), o organismo de cada pessoa responderá a cada substância de forma diferente. Não há como entender, portanto, certos discursos médicos "antidrogas" que apresentam algumas substâncias como sendo inevitavelmente agressivas a tod@s que com elas cruzarem contato - enquanto que as substâncias que eles prescrevem possuem contra-indicações, efeitos adversos e dosagens reguladas para cada organismo. O contexto do uso é psicológico e social: o "comportamento viciado" não se resume somente à mera ação de substâncias químicas sobre o corpo.

Comprovando a importância destes fatores, existem inúmeros "comportamentos viciados" com práticas que não envolvem a administração de substâncias químicas no organismo - o vício em jogos, por exemplo. A questão a ser prevenida, portanto, não é a mera prática em si (as substâncias químicas ou os jogos), mas principalmente a relação que é construída em torno desta prática por algumas pessoas.

PROERD

Uma das nossas propostas mais importantes na conferência se deu sobre a intenção original, que visava um estabelecimento definitivo do PROERD em Porto Alegre. O PROERD é um programa ultrapassado, importado do modelo americano de "war on drugs", no qual policiais são selecionados para dar "aulas contra o uso de drogas" nas escolas. Coloca-se a temática de uma forma repressiva e nada educativa através de palavras como "guerra" ou "combate", e desrespeitando a inteligência dos adolescentes com frases no estilo "just say no". Com isso, acabam por desinformá-los e desprepará-los para lidar com a realidade das drogas na sociedade, e incentivar opiniões moralistas e estigmatizadoras acerca de drogas e seus usuários, contribuindo para o aumento do preconceito e do tabu, bem como para um desentendimento desta prática social que possui significados muito diversos entre si. Grupos americanos que, como o nosso, contestam tal abordagem, evidenciam esta falha com um bom trocadilho: "just say know!".

Pois como nem todo usuário constrói relações problemáticas, um jovem que tenha passado pelo PROERD, ao encontrar com um usuário não problemático de cannabis, por exemplo, questionará tudo que ouviu, podendo achar inclusive que, já que cannabis não mata (conforme alertaram), é possível que ela "sempre faça bem à saúde". Ou seja, exclui-se a possibilidade de reduzir danos, e mesmo a de informar. Um repressor deixará a saúde em segundo plano, por enxergar no uso um crime.

Propomos uma revisão do PROERD como algo ultrapassado, substituindo-o por equipes multidisciplinares que passassem informações claras e não-repressivas sobre drogas nas escolas (compostas principalmente por trabalhadores da saúde, psicólogos e cientistas sociais, dentre outros profissionais), e assim promovendo a possibilidade de um diálogo franco e aberto sobre o tema.

A construção do temido "mundo das drogas" - e suas portas de entrada...

Outra adaptação do grupo foi acerca de políticas públicas que promovessem eventos culturais nas comunidades onde a venda de drogas é mais presente, visando maior inserção social dos jovens. Projetos como esse são imprescindíveis ao atuar nessa realidade, e bom exemplo disso é o Afroreggae.

A proposta original, no caso, estava escrita da seguinte forma: "criar um sistema de proteção à drogadição de jovens adolescentes, com o objetivo de evitar sua cooptação ao mundo das drogas".

Ora, mas o "mundo das drogas" é o mundo no qual vivemos há milênios.. Se queremos entender e lidar com esta questão, devemos encará-la como real, e não cair no engano de achar que podemos "evitar" entrar em contato com elas - nem que seja para falar sobre o assunto. Neste sentido é que certos argumentos "contra as drogas" acabam soando confusos: como não se consegue extinguir as drogas do mundo, muitos fingem que elas não existem - e mesmo se existem, dá a impressão de que não podemos dialogar com elas, a não ser para repudiá-las, reprimir a sua existência, deixar a realidade das drogas sob uma cortina de fumaça.

E é aqui cabe mais uma reflexão sobre a construção do conceito de "drogas".

Foto de matéria de Zero Hora sobre usuários de cannabis:
"cortina de fumaça" sobre as causas da violência.


Podemos lembrar do conceito de "dispositivo", para o filósofo M. Foucault, quando aplicado à difusão de idéias sobre drogas. Para o pensador francês, certos discursos e saberes, durante o processo no qual ganham um status de reconhecimento (científico, por exemplo), através deste reconhecimento começam a se articular e agir através de outras esferas sociais - e os agentes destas esferas variadas (a grande mídia, por exemplo) irão reproduzir as noções deste discurso.

Tal aproximação é lembrada pelo pesquisador Maurício Fiore (neip -USP), que analisa, por exemplo, o papel da mídia ao abordar o tema "drogas", agindo não só como reprodutora do discurso (cientificamente construído) da "guerra às drogas", como também como incitadora de toda uma forma de se entender a questão do uso de drogas na sociedade. Ou seja, ao mesmo tempo que se reprime a droga, através de conceitos como "combate", "guerra", "morte" e "vício", se cria com isso todo um ambiente de diálogo e percepção sobre o assunto que não têm como não ser "violento" - e "viciado". É de se perguntar até que ponto a instauração de uma abordagem de "guerra" ao assunto está contribuindo para um debate de um tema sobre o qual, geralmente, dizem que não se pode falar por ser "delicado demais"; como uma realidade que é tão horrível que é preferível omití-la - gerando assim tabus, preconceitos e generalizações que em nada contribuem para um melhor entendimento da questão.

Depois que algumas substâncias se tornaram ilícitas, no século passado, o termo "drogas" passou a sofrer alterações de significado, de forma direta e indireta, conscientemente ou não, por parte das pessoas que falam sobre isso.

Quando alguém reprime as drogas ilícitas, não está somente reprimindo-as, mas está também ajudando a construir uma idéia específica sobre "drogas ilícitas" - uma idéia que conferirá características às "drogas" justificando a sua repressão. Por exemplo: "drogas sempre matam", "drogas sempre levam à violência", etc. Em outras palavras, podemos dizer que a repressão necessita da idéia de droga como sendo "uma coisa sempre maligna e sempre perversa".

Esta concepção sobre "drogas" nasce com a proibição, legitimando-se no senso comum e reproduzindo-se tanto através de julgamentos subjetivos e morais quanto nas instituições. Isto nós podemos observar nas restrições e proibições impostas quanto ao interesse de pesquisadores sobre o tema, dentro das próprias universidades; ou na omissão, manipulação ou distorção feitas em determinadas pesquisas científicas sobre drogas.

O exemplo mais clássico dos desdobramentos desta distorção é a teoria da "porta de entrada": para alguns cientistas concluírem que "o uso de cannabis sempre leva ao uso de drogas pesadas" como heroína, ao invés de pesquisarem usuários de cannabis, pesquisaram usuários das drogas mais pesadas... Este método, de pesquisar um fato (ex: uso de heroína) e atribuir um dado isolado (histórico de uso de cannabis) como sendo um fator causal do objeto estudado, além de raso é intelectualmente desonesto. Caso fossem feitas pesquisas com usuários de cannabis, a "teoria" da porta de entrada seria reduzida a dado estatístico insignificante. Redutores de Danos no mundo todo vêm aplicando a cannabis inclusive como "porta de saída" para usuários de drogas pesadas como o crack, conforme terapias de substituição - e segundo estes trabalhadores da saúde elas vêm dando muitos resultados positivos.

Para fazer uma ironia, partindo de um método de pesquisas como o da "porta de entrada", pode-se chegar a conclusões absurdas, como por exemplo a de que "o fator causal das mortes de pessoas é o fato de elas terem nascido" - e a partir daí, defender a proibição da gravidez para reduzir a ocorrência de mortes. Pareceria absurdo demais - e na nossa opinião, as políticas antidrogas são tão absurdas quanto esta possa soar. Por seu fracasso ao reduzir demanda e consumo, e por seu fornecimento de uma lógica perversa na qual morrem muitos cidadãos - incluindo aqueles que a princípio não estariam ligados com uso, venda ou repressão, mas que acabam sendo alvo direto ou indireto desta guerra.

Sobre esta questão da violência, tentamos expôr alguma reflexão na outra parte do texto.

De resto, enquanto não enxergarmos o "outro lado" deste "mundo das drogas", aprendendo a observar a construção arbitrária destes conceitos "aterrorizantes" a partir da abordagem criada após a proibição, não poderemos entender a lógica que envolve a questão. Consideramos uma tarefa de todos os que se preocupam com a questão identificar e isolar os tabus que costumam rondar o tema, sob pena de nos afastarmos cada vez mais de um debate claro sobre uma questão urgente.

Acima de tudo, não se pode ter medo de falar sobre drogas - e o que propomos aqui, enquanto um grupo de estudos e pretenso movimento social, é o simples exercício da troca de idéias.

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