Talvez a cidade não tenha se dado conta, mas no domingo passado, dia 7 de maio, um episódio significativo e paradigmático da nossa vida social e cultural se desenrolou no Parque da Redenção, em Porto Alegre. Nessa data seria realizada, se não tivesse sido, três dias antes, cancelada, a primeira edição na cidade da Marcha Mundial da Maconha e por uma nova política de drogas. As razões do cancelamento já foram anteriormente bem expressas pelo coletivo Princípio Ativo, organizador da manifestação, e não serão aqui muito aprofundadas. Basta dizer que, diante da irresponsabilidade da imprensa, ao criar um clima de confronto em potencial para a manifestação, e diante da preparação, por parte dos órgãos de segurança pública, de uma “operação especial” para reprimir qualquer ato que pudesse ser interpretado como ilícito (e aí se inclui desde o consumo de substâncias até um cartaz que fosse visto como apologia), os organizadores julgaram por bem cancelar o ato. Porto Alegre estava se mostrando incapaz de convivência democrática entre as diferentes posições políticas acerca de um tema tão delicado e gerador de tanto sofrimento como é a questão das drogas. Mas o pior ainda estava por vir: no dia 7, mesmo com o cancelamento da manifestação, tendo em vista a preservação da integridade e da segurança de manifestantes e freqüentadores do Parque da Redenção, a polícia realizou uma “operação padrão”. Policiais à paisana circulavam pelo parque a fim de flagrar jovens que estivessem fumando ou portando maconha, atividade que, no entender de muitos, constitui um grave delito e um sério dano à segurança social. Notório local de uso de drogas, a Redenção foi esquadrinhada e mais de 50 pessoas, em sua imensa maioria jovens, foram detidas. Punição exemplar? No nosso entendimento, espetáculo patético. Exibição pública de uma lei medieval.
Essa intervenção do Estado na vida desses jovens provavelmente causou-lhes muito mais danos do que todos os baseados que eles pudessem fumar ao longo do domingo no parque. E, ademais, tal ação não representa absolutamente nada diante do problema social que se liga ao uso de drogas, problema este que se refere muito mais aos danos que essa legislação causa à sociedade do que aos danos que as próprias substâncias causam. Nunca é demais lembrar que, hoje, no Brasil, morre-se muito mais devido à guerra às drogas (conflitos entre traficantes e destes com a polícia) do que devido ao uso dessas substâncias. Isto posto, a pergunta é: se após décadas dessa receita o que tivemos foi aumento do consumo de drogas e da violência urbana, por que insistir em operações como essa? Será para “mostrar serviço” à sociedade, que se encontra paralisada e aterrorizada diante da situação e, tal qual avestruz, enfia a cabeça na areia pra não enxergar que é ela mesma a causa dos seus maiores pesadelos? É o preconceito e o moralismo que impedem as pessoas de pensarem e reivindicarem uma nova política de drogas, realmente capaz de reduzir os danos tanto aos usuários quanto à sociedade, que sofre não só com o problema das drogas, mas, principalmente, com o problema da proibição das drogas. Operações como essa, que prendem mais de 50 jovens, por condutas absolutamente inofensivas, mobilizam dezenas de agentes e envolvem altos custos ao Estado. E que retorno a sociedade tem? Pergunta-se: no que essa operação adiantou para melhorar a situação? Deter mais de 50 jovens por horas na delegacia, submetê-los à lamentável experiência de serem algemados e espremidos no posto policial e, depois, levados de camburão à delegacia para assinarem um papel e serem, após o devido terror, liberados. Para isto a sociedade está pagando impostos escorchantes?
A questão das drogas ultrapassa, em muito, essa dimensão policialesca. O uso de drogas é, talvez, a prática social mais antiga de que se tem notícia e não é porque uma determinada sociedade, uma cultura particular, decidiu fazer da criminalização dessa atividade um dogma que tal prática vai ser abandonada ou mesmo perder o sentido que seus praticantes lhe conferem, sentido este que em muito se distancia da idéia de um “crime”.
Episódios como esse nos dão o que pensar. O que aconteceu no Parque da Redenção no último domingo foi um rito autoritário e ritos autoritários sempre indicam a presença de situações conflitivas. A sociedade brasileira parece avessa ao conflito, mas isso, de forma alguma, o elimina. Ao contrário, em sociedades como a nossa, de passado colonial, de presente dependente e posição periférica, crises e conflitos estão sempre acontecendo. No entanto, temos a tendência de negar, de não reconhecer as situações de conflito. Em outras sociedades, crises como esta, surgidas a partir da vontade de um grupo em realizar uma prática e a vontade de um outro grupo em proibir e impedir tal prática, são resolvidas a partir do seu reconhecimento como parte da vida política e social e da construção de alternativas ao impasse conflitivo. Aqui, entre nós, a crise não chega sequer a ser admitida. Em outros países, quando esse problema em torno do uso de drogas se colocou de maneira forte, a crise que daí adveio indicou algo a ser corrigido. Produziram-se então leis de descriminalização do usuário e, em alguns países, regulamentação das relações de produção, distribuição e consumo de drogas. Já no Brasil, parece que a tradição é conceber qualquer crise como um presságio do fim do mundo, como uma ameaça estrutural à moral e aos bons costumes, “ao nosso modo de viver”. O que fazemos então? Nós fingimos que a crise não existe e falamos em outra coisa, enquanto o pessoal da segurança remove o incômodo pra delegacia. Olhamos pro outro lado e ignoramos a possibilidade de encarar de forma madura e responsável os nossos problemas.
Precisamos rediscutir a nossa política de drogas, sob pena de gerarmos um monstro tal que não poderemos mais com ele lidar. Se o uso de drogas é um problema, as conseqüências da proibição desse uso são um problema ainda maior, pois, além de não evitar o consumo (ou alguém acha que algum desses jovens vai deixar de fazer o que estava fazendo no último domingo?), ainda propicia as condições para uma guerra civil em meio a nossa hipocrisia. Está morrendo muita gente, principalmente nas periferias, devido à guerra às drogas. Pessoas que, sem melhores perspectivas de vida, acabam, pouco a pouco, enveredando para o comércio ilícito de drogas. Acaso essas vidas valem menos do que as nossas? Deve o Estado virar as costas para esse problema?
Acreditamos que o melhor a fazer é, primeiramente, controlar a situação por meio da regulamentação da produção, da distribuição e do consumo de drogas. Precisamos saber e determinar quem vende, quem compra, onde, quanto e o quê. Precisamos saber pra onde esse dinheiro vai (e deve ir para programas de informação e educação para prevenção, bem como para o tratamento de dependentes químicos). Essas são estratégias muito mais capazes de redução de consumo e de danos sociais do que simplesmente investir dinheiro público em prisões de adolescentes. O recado que a sociedade dá a esses jovens, ao prendê-los, é: vocês são criminosos, comportem-se como tais. Estamos criando identidades e convidando adolescentes à revolta. Quantos deles não estão usando drogas justamente como sintoma de sua revolta e de sua inadequação em meio a nossa sociedade hipócrita, autoritária, individualista?
O rito autoritário que ocorreu no dia 7 de maio em Porto Alegre revela traços sérios da nossa vida social. Revela, primeiramente, que há um conflito no seio da nossa sociedade e que nós não estamos sabendo como solucioná-lo. Pior, não estamos nem ao menos reconhecendo a sua existência, já que chamamos crime uma prática social milenar e, com relação aos nossos jovens, nós os ameaçamos e encarceramos por ousarem ser críticos a esse absurdo. Não queremos admitir o conflito porque sabemos que conflitos abertos são marcados pela representatividade de opiniões e que nessas situações não há como deixar de ouvir todos os lados envolvidos. É isso justamente o que não queremos, pois essa igualdade de condições para expor argumentos e pontos de vista se choca frontalmente com o esqueleto hierarquizante da nossa sociedade.
Essa perseguição inquisitorial aos usuários de drogas denuncia em níveis cotidianos nossa ojeriza à discórdia e à crise, revelando nossa preocupação em manter cada qual no seu lugar da hierarquia, o que fazemos com autoridade. Num mundo como o nosso, que tem de se mover obedecendo às engrenagens de uma hierarquia que deve ser vista como algo natural (“é natural que usuários de drogas sejam estigmatizados e desconsiderados em seus anseios e pontos de vista”), os conflitos tendem a ser tomados como irregularidades. Mas não é assim. O conflito gerado pelo uso de drogas não é uma irregularidade. É uma demanda de parcela expressiva da sociedade que afirma não estar satisfeita com a forma como outra parcela tem gerido os problemas. É difícil para essas pessoas entender como e por que a cervejinha e o uisquinho no final do dia são legítimos, mas a canábis não. Não há critério científico nessa distinção, tampouco justificação lógica. Incoerências como essa, no interior de um sistema social, é o que alguns cientistas sociais chamam de injustiça.
Temos de ver nesse conflito um sintoma de crise no nosso sistema e não mais uma revolta que deve e precisa ser reprimida. Aqueles que estamos encarcerando são estudantes, professores, médicos, advogados, engenheiros, cidadãos como nós, que pagam seus impostos justamente para que o Estado lhes resguarde o direito de fazer o que bem entenderem com seus próprios corpos, desde que não prejudiquem os outros. Lesar a si mesmo não constitui crime. Em teoria. Na prática, no Brasil, nenhuma teoria se aplica. Esse conflito em torno do uso de drogas é uma crise no nosso sistema e, diante de crises, nosso esforço deve ser no sentido de modificar toda a teia de relações implicadas na estrutura, ou seja, mediar e resolver o conflito (Áreas próprias para consumo de drogas? Vendedores autorizados? Um código de regulamentação que prescreva direitos e deveres do usuário? Discutamos abertamente tais assuntos). Ao tratarmos um anseio legítimo de uma grande parcela da população como atos de revolta, o que fazemos é circunscrever o conflito e fingir tê-lo resolvido com algumas prisões aqui, umas apreensões acolá... Mas a tensão só aumenta. O fosso e a incomunicabilidade só crescem. E, com eles, a violência que nos apavora e paralisa. Fecha-se, novamente, o ciclo e o avestruz se esconde debaixo da areia pra não encarar suas responsabilidades. Nossas responsabilidades.
Não encaramos o conflito como crise e acabamos por pessoalizá-lo. Então o grande vilão é o usuário. Depois, é o traficante. Às vezes, para outros, é o policial. Ou a corrupção. Ou os políticos. Sempre no particular, mas nunca vislumbrando a estrutura, esta sim, que urge ser modificada se ainda queremos sonhar com paz e justiça social. É assim que agimos quando tomamos conflitos como esse nunca como atualizações de valores e princípios estruturais da nossa sociedade, mas sempre como a manifestação de traços pessoais indesejáveis. Assim, apontamos sempre para alguém que é culpado e nos eximimos de apontar para nós todos, enquanto sociedade, como causadores dos conflitos que tanto nos assustam e indignam.
Todos sabemos que o uso de drogas está em crescimento e se espalha por todos os estratos sociais. Todos sabemos que essa prática de usar drogas existe em todos os tempos e todas as sociedades humanas. Todos sabemos que a proibição é um produto do século XX e que, depois dela, o uso de drogas tornou-se um sério problema social. Conhecemos tudo isso, mas insistimos em não reconhecer, para não resolver, nossos problemas. Não há mais como solucionar esse conflito com violência e repressão. É preciso um acordo, um pacto, uma aproximação entre as partes, que já não mais se comunicam, apenas se agridem. Negar e reprimir não são parte da solução, pois foram elementos centrais na constituição do problema. Quando uma regra passa a ser um problema, quando um costume desejado e praticado por muitas pessoas no interior de uma sociedade passa a ser perseguido e tenta-se extirpá-lo é preciso rever certos dogmas, sob pena de os conflitos se ampliarem até o insuportável. As leis não podem vir de cima para baixo, elas devem ser produto das práticas sociais de um povo. Sem a disposição política de obediência não há lei que se sustente. Nem a cacetadas.
O que temos no Brasil é uma regra que proíbe e reprime o uso de algumas drogas, mas uma prática geral de incentivo ao uso de outras drogas. Apologia ao uso de drogas é o que vemos diariamente na televisão, nos comerciais de cerveja. E por mais que o consumo de álcool esteja envolvido em diversos conflitos na nossa sociedade, o furor quem causa não é ele, mas a canábis, a plantinha “do mal”. E ainda há quem duvide do poder simbólico...
quinta-feira, maio 11
terça-feira, maio 9
Discutindo políticas de drogas: as atuais políticas estão funcionando?
Sempre que se fala no tema “drogas”, logo vêm à tona discursos inflamados, invariavelmente centrados nesta ou naquela propriedade desta ou daquela substância. Rapidamente a discussão perde o foco, perdendo-se, também, a possibilidade de aprofundamento em um tema talvez ainda mais importante: políticas de drogas.
Falar em políticas de drogas não é falar sobre as drogas em si, seus efeitos, seus modos e contextos de uso. Não se trata, pois, de falar sobre os malefícios que o uso de drogas pode causar e nem de falar sobre se, idealmente, sonhamos com uma sociedade onde ninguém faça uso de substâncias psicoativas ou, ao contrário, se achamos que algumas drogas nos oferecem possibilidades de benefícios e não apenas malefícios. É claro que tais enfoques são, também, muito importantes e devem ser levados em conta. No entanto, parece que eles já têm seu espaço garantido e que a sociedade, em grande parte, já tomou consciência desses debates. O que falta é que esta mesma sociedade assuma um papel crítico e protagonize a discussão sobre que tipo de políticas devem ser empregadas na abordagem da questão complexa do uso de drogas. Ou seja, trata-se, aqui, a partir de uma leitura do que a realidade nos indica, de pensarmos acerca das formas pelas quais o Estado deve se envolver nessa questão.
Inicialmente, é preciso partir, nessa discussão, do fato incontestável de que seres humanos sempre usaram, continuam a usar e, tudo indica, futuramente também continuarão a fazer uso de uma vasta gama de substâncias que, muito diferentes entre si, guardam em comum a capacidade de agir sobre nosso organismo. Isto posto, trata-se de pensar sobre como o Estado deve se colocar, diante dessa realidade, no sentido de cumprir com sua razão de ser, ou seja, como ele deve agir para preservar, ao máximo, o bem comum.
As drogas que hoje conhecemos como de uso ilícito foram proibidas na primeira metade do século XX. A justificativa dessa medida foi a preservação da saúde das pessoas. Esperava-se, com a aplicação de penas àqueles que fizessem uso ou comerciassem essas substâncias, reduzir o seu consumo e, conseqüentemente, os danos às pessoas e à sociedade. Mais de meio século depois, nos confrontamos com a paradoxal situação de ver o consumo dessas drogas atingir níveis inimagináveis quando de sua proscrição, de modo que nos é lícito afirmar que nunca se usou tantas drogas quanto após a proibição. Mas os problemas e os paradoxos não param por aí. Com o aumento da demanda e a proibição da constituição de um mercado legal, no seio de uma sociedade capitalista, formou-se uma rede de comércio ilícito desses produtos, de modo a garantir sua chegada aos consumidores. Essa rede, operando sem qualquer forma de controle por parte do Estado, passou a regulamentar suas atividades por conta própria, dando origem a um processo de violência crescente nas grandes cidades brasileiras: na ausência de regulação oficial, partiu-se para a lei da selva, problema que foi agravado pela entrada das forças de segurança oficiais nesse combate, na inútil tentativa de impedir, pela via repressiva, que alguém que quer vender algo e alguém que quer comprar esse algo fizessem o negócio. Violência, como sempre acontece, gerou mais violência e o resultado disso está nos jornais, na televisão e no contundente recado do rapper MV Bill: milhares de mortes, absolutamente desnecessárias, de jovens sem qualquer perspectiva ou amparo de uma sociedade que lhes virou as costas. Milhares de mortes, é bom que se diga, ligadas diretamente à violência do tráfico e da repressão policial e não ao uso daquelas drogas que, lá no começo do século XX, foram proibidas para evitar mortes desnecessárias entre os nossos jovens. E aqui chegamos, novamente, ao ponto de partida: políticas de drogas.
O objetivo de uma política pública é o bem público, mas a atual política de drogas causou danos maiores do que os que haviam antes de sua implementação. Se as drogas são perigosas e capazes de arruinar vidas (e são), as conseqüências, aqui enunciadas, de sua proibição, têm arruinado muito mais vidas, destruído muito mais sonhos e produzido muito mais danos à sociedade. A violência saiu dos guetos e nos olha a todos na cara. Nos intimida e paralisa. É preciso reconhecer o fracasso da proibição e da repressão ao uso de drogas. Além de todo esse quadro de violência absurda, a criminalização dessas condutas afasta dos profissionais de saúde os usuários que se tornaram dependentes, ampliando em muito os danos que as drogas, por si só, já causam. E isso sem falar no desperdício de dinheiro público que é a manutenção das estratégias repressivas, enquanto faltam recursos para tratamento digno e de qualidade aos dependentes (é bom lembrar, sempre, que a repressão, além de ineficaz, é muito mais dispendiosa do que a prevenção).
Por tudo isso, e por inúmeras outras razões, faz-se necessário engolir os preconceitos e assumir a discussão de uma nova política de drogas, que seja efetivamente capaz de reduzir o consumo através de abordagens educativas e preventivas, evitando todos os danos que a proibição e a repressão causam. Não se trata de liberar indiscriminadamente a venda e o uso dessas substâncias, mas de regulamentar suas relações de produção, distribuição e consumo, de modo que seja possível determinar exatamente quem vende, quem compra, onde, em que quantidade, quais produtos e, é claro, para onde vai o dinheiro movimentado nesse comércio. É possível a construção de um modelo menos nocivo do que o atual. É possível reduzir a violência, controlar o consumo de drogas, arrecadar fundos para educação e prevenção e diminuir a corrupção que os recursos do tráfico engendram no poder público. A aplicação de uma nova política de drogas, com essas diretrizes, em conjunto com projetos de distribuição de renda e geração de oportunidades é capaz, se não de construir aquela sociedade dos nossos sonhos, ao menos de reduzir, em muito, os danos causados por décadas de políticas equivocadas.
Falar em políticas de drogas não é falar sobre as drogas em si, seus efeitos, seus modos e contextos de uso. Não se trata, pois, de falar sobre os malefícios que o uso de drogas pode causar e nem de falar sobre se, idealmente, sonhamos com uma sociedade onde ninguém faça uso de substâncias psicoativas ou, ao contrário, se achamos que algumas drogas nos oferecem possibilidades de benefícios e não apenas malefícios. É claro que tais enfoques são, também, muito importantes e devem ser levados em conta. No entanto, parece que eles já têm seu espaço garantido e que a sociedade, em grande parte, já tomou consciência desses debates. O que falta é que esta mesma sociedade assuma um papel crítico e protagonize a discussão sobre que tipo de políticas devem ser empregadas na abordagem da questão complexa do uso de drogas. Ou seja, trata-se, aqui, a partir de uma leitura do que a realidade nos indica, de pensarmos acerca das formas pelas quais o Estado deve se envolver nessa questão.
Inicialmente, é preciso partir, nessa discussão, do fato incontestável de que seres humanos sempre usaram, continuam a usar e, tudo indica, futuramente também continuarão a fazer uso de uma vasta gama de substâncias que, muito diferentes entre si, guardam em comum a capacidade de agir sobre nosso organismo. Isto posto, trata-se de pensar sobre como o Estado deve se colocar, diante dessa realidade, no sentido de cumprir com sua razão de ser, ou seja, como ele deve agir para preservar, ao máximo, o bem comum.
As drogas que hoje conhecemos como de uso ilícito foram proibidas na primeira metade do século XX. A justificativa dessa medida foi a preservação da saúde das pessoas. Esperava-se, com a aplicação de penas àqueles que fizessem uso ou comerciassem essas substâncias, reduzir o seu consumo e, conseqüentemente, os danos às pessoas e à sociedade. Mais de meio século depois, nos confrontamos com a paradoxal situação de ver o consumo dessas drogas atingir níveis inimagináveis quando de sua proscrição, de modo que nos é lícito afirmar que nunca se usou tantas drogas quanto após a proibição. Mas os problemas e os paradoxos não param por aí. Com o aumento da demanda e a proibição da constituição de um mercado legal, no seio de uma sociedade capitalista, formou-se uma rede de comércio ilícito desses produtos, de modo a garantir sua chegada aos consumidores. Essa rede, operando sem qualquer forma de controle por parte do Estado, passou a regulamentar suas atividades por conta própria, dando origem a um processo de violência crescente nas grandes cidades brasileiras: na ausência de regulação oficial, partiu-se para a lei da selva, problema que foi agravado pela entrada das forças de segurança oficiais nesse combate, na inútil tentativa de impedir, pela via repressiva, que alguém que quer vender algo e alguém que quer comprar esse algo fizessem o negócio. Violência, como sempre acontece, gerou mais violência e o resultado disso está nos jornais, na televisão e no contundente recado do rapper MV Bill: milhares de mortes, absolutamente desnecessárias, de jovens sem qualquer perspectiva ou amparo de uma sociedade que lhes virou as costas. Milhares de mortes, é bom que se diga, ligadas diretamente à violência do tráfico e da repressão policial e não ao uso daquelas drogas que, lá no começo do século XX, foram proibidas para evitar mortes desnecessárias entre os nossos jovens. E aqui chegamos, novamente, ao ponto de partida: políticas de drogas.
O objetivo de uma política pública é o bem público, mas a atual política de drogas causou danos maiores do que os que haviam antes de sua implementação. Se as drogas são perigosas e capazes de arruinar vidas (e são), as conseqüências, aqui enunciadas, de sua proibição, têm arruinado muito mais vidas, destruído muito mais sonhos e produzido muito mais danos à sociedade. A violência saiu dos guetos e nos olha a todos na cara. Nos intimida e paralisa. É preciso reconhecer o fracasso da proibição e da repressão ao uso de drogas. Além de todo esse quadro de violência absurda, a criminalização dessas condutas afasta dos profissionais de saúde os usuários que se tornaram dependentes, ampliando em muito os danos que as drogas, por si só, já causam. E isso sem falar no desperdício de dinheiro público que é a manutenção das estratégias repressivas, enquanto faltam recursos para tratamento digno e de qualidade aos dependentes (é bom lembrar, sempre, que a repressão, além de ineficaz, é muito mais dispendiosa do que a prevenção).
Por tudo isso, e por inúmeras outras razões, faz-se necessário engolir os preconceitos e assumir a discussão de uma nova política de drogas, que seja efetivamente capaz de reduzir o consumo através de abordagens educativas e preventivas, evitando todos os danos que a proibição e a repressão causam. Não se trata de liberar indiscriminadamente a venda e o uso dessas substâncias, mas de regulamentar suas relações de produção, distribuição e consumo, de modo que seja possível determinar exatamente quem vende, quem compra, onde, em que quantidade, quais produtos e, é claro, para onde vai o dinheiro movimentado nesse comércio. É possível a construção de um modelo menos nocivo do que o atual. É possível reduzir a violência, controlar o consumo de drogas, arrecadar fundos para educação e prevenção e diminuir a corrupção que os recursos do tráfico engendram no poder público. A aplicação de uma nova política de drogas, com essas diretrizes, em conjunto com projetos de distribuição de renda e geração de oportunidades é capaz, se não de construir aquela sociedade dos nossos sonhos, ao menos de reduzir, em muito, os danos causados por décadas de políticas equivocadas.
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