quarta-feira, maio 17

Mas alcoolismo não é uma doença?

Os incidentes que culminaram na expulsão do jornalista americano William Rohter, há já algum tempo, devido à matéria publicada no The New York Times, trouxeram inúmeros elementos que podem ser analisados à luz de inúmeras teorias e concepções. Podemos analisar toda a novela por uma ótica construída a partir dos problemas da ética na imprensa, ou a partir das questões da diplomacia internacional, ou ainda com respeito ao universo dos Direitos Humanos, no que tange às questões relacionadas à liberdade de imprensa. Podemos olhar para a reação do governo, entendendo-a como um sintoma dentro de todo um contexto político extremamente complicado para o governo Lula no momento atual. Enfim, tudo isto, e muito mais, é possível. O exercício que vou construir aqui é, portanto, apenas um dos possíveis.
Para quem não lembra, refiro-me ao caso em que o presidente Lula foi acusado por um jornalista norte-americano como um bêbado, alcoólatra. Os escritos reverberaram por alguns dias na imprensa brasileira, e depois caíram no esquecimento. Durante aqueles dias, porém, vários políticos pronunciaram-se sobre o caso, de diferentes formas.
O que me chamou a atenção, principalmente devido à minha condição de trabalhador da saúde que atua diretamente com pessoas usuárias de substância psicoativas, foi o total desconhecimento e preconceito com o qual o problema do alcoolismo foi tratado nas inúmeras declarações feitas por homens públicos nos últimos dias, de todas as matrizes ideológicas, em todas as esferas do poder. Não vou me dedicar à crítica ao infeliz texto do jornalista americano, coberto de inverdades, pois não há nenhum ponto de crítica que eu possa abordar que já não o tenha sido, de forma muito mais eficiente, por inúmeros articulistas em todo o país. Mas me impressiona que, até agora, nenhuma única voz tenha se levantado contra as ofensas e as manifestações de ignorância e preconceito levadas a cabo por pessoas públicas de todo o país, no afã de defender o presidente e de atacar o jornalista.
Dentre as manifestações que se enquadram, houve aquelas que colocaram o uso (ou abuso) do álcool como uma questão de honra. O Ministro do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, disse: “Minha reação é de indignação. Atinge não só à pessoa honrada do presidente Lula, como também à instituição da Presidência da República e a toda a nação brasileira”. Já o vice-presidente José de Alencar disse que “Lula é um homem de bem, e todos nós, brasileiros, temos de nos revoltar. É um desrespeito ao nosso presidente”. O senador Arthur Virgílio, do PSDB, nos brinda com "Não é bom enveredar por este caminho, porque, se formos por aí, eu diria que a política externa dos Estados Unidos é bêbada. Eles promoveram dois Vietnãs em 50 anos”. E finalmente, como não bastasse às declarações feitas oralmente, no calor das discussões e da tribuna, sujeitas, portanto, a deslizes que talvez não possam ser tão duramente criticados, temos a pérola do preconceito em sua versão oficial, qual seja: a nota que acompanhou a decisão de cancelamento do visto do jornalista americano, assinada pelo ministro interino da justiça, Luis Paulo Teles Ferreira Barreto, que diz que tal decisão foi tomada “... em face de reportagem leviana, mentirosa e ofensiva à honra do presidente da República, com grave prejuízo à imagem do país no Exterior”. Todas as declarações aqui citadas foram pinçadas de matérias publicadas no Jornal Zero Hora, entre os dias dez e doze de maio. Tenho certeza de que se minha pesquisa fosse mais profunda, eu teria coletado um número muito maior de peças passíveis de uma análise a partir do escopo do preconceito e do desconhecimento com relação aos problemas relacionados ao uso de álcool.
Podemos ver, por exemplo, que a palavra honra aparece repetidas vezes. Diz Miguel Rosseto que a matéria atinge à “... pessoa honrada do presidente...”. Já na declaração do Ministro Interino da Justiça, vemos que a matéria publicada no The New York Times foi “... ofensiva à honra do presidente...”.
Ora; o que incomodou na matéria não foi o fato de que se afirma que o presidente Lula faz uso de bebidas alcoólicas. Isto moeda corrente, e ninguém, nem mesmo o presidente, faz segredo disto. O que incomodou foi o fato de que a matéria aponta para o fato de que o presidente teria problemas com o álcool. O próprio governo brasileiro, porém, através do Ministério da Saúde, considera o uso abusivo de álcool como um problema de saúde pública. O documento oficial “A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas”, na página dezessete, sob o sub-título “Alcoolismo: o Maior Problema de Saúde Pública”, diz que “... A reafirmação histórica do papel nocivo que o álcool nos oferece deu origem a uma gama extensa de respostas políticas para o enfrentamento dos problemas decorrentes de seu consumo, corroborando assim o fato concreto de que a magnitude da questão é enorme, no contexto da saúde pública mundial”. A própria Organização Mundial de Saúde inclui dentro de sua catalogação oficial o CID F10, caracterizado como “Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool”.
Se concordarmos todos, como o fazem OMS e Ministério da Saúde, sobre o alcoolismo ser um problema de saúde, por que então ligar a suspeita de que o presidente está doente com ataques à sua honra? Uma pessoa doente é uma pessoa sem honra? Ou ainda como pode ser visto na declaração do vice-presidente, que a afirma que “... Lula é um homem de bem...”, dando a entender que se ele ficar doente (ou seja, se vier a desenvolver problemas devido ao uso de álcool), ele deixará de ser uma pessoa de bem.
A pérola maior, no entanto, é a declaração do Senador Arthur Virgílio, dizendo que a política externa americana é “bêbada”, por ter promovido dois Vietnãs em cinqüenta anos. Segundo a declaração do Senador, portanto, podemos concluir que os alcoolistas são “bêbados” e intrinsecamente violentos. É isto ou estou enganado?
Não acredito que o Presidente Lula seja um alcoolista. Acredito, sim, que a matéria teve a clara intenção de desestabilizar o governo. O governo, por sua vez, ao agir com truculência, perdeu uma grande oportunidade de usufruir um dos raros momentos em que gozou, nos últimos tempos, de um apoio unânime no cenário político nacional e internacional, haja visto todas as declarações posteriores à publicação da matéria no The New York Times ofereceram apoio e solidariedade total ao presidente. Clara demonstração de inabilidade política. Para usar o jargão popular, “perdeu-se uma boa chance de se ficar calado”.
Não obstante, para nós que trabalhamos de uma forma ou de outra com a pessoa usuária de álcool e outras drogas, este momento foi extremamente rico, oferecendo uma boa oportunidade de sabermos exatamente quais as idéias que povoam o imaginário político nacional a respeito deste grave problema de saúde publica. Só para constar, é importante que se diga que de tudo o que se gasta com saúde mental no Brasil, sessenta por cento é consumido no tratamento de pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas. Desses sessenta por cento, mais de oitenta dizem respeito exclusivamente a problemas relacionados ao álcool. Não obstante este fato, o preconceito e a ignorância com relação a estes problemas ainda são imensos. Em depender das declarações de nossos homens públicos, estamos investindo estes recursos públicos na recuperação e tratamento de pessoas imorais e desonradas. Como Vinícius de Moraes ou Lima Barreto, por exemplo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mais uma vez, mais um texto muito bem colocado e muito bem construido, mostrando de uma forma clara o que muitos de nós já sabíamos: Não existe droga pior do que a ignorância.
O preconceito em cima das drogas está causando um mal muito maior do qeu faria apenas pela decorrência do uso.
Sempre se usou drogas, mas só agora vemos as conseqüencias da lei que proibe, com a morte de vários policiais, agentes penitenciarios e pessoas comuns.
As autoridades culpam os usuários, pessoas reconhecidamente doentes, dependentes de substâncias que só são encontrados na mão de traficantes, já que a lei o transforma em traficante, mesmo se você plantar somente para seu proprio consumo. Ou seja, pessoas doentes, tratadas como criminosas, Pessoas que não querem contribuir para o tráfico, mas que consomem algum tipo de droga não prevista na lei, são consideradas TRAFICANTES exatamente por não querer deixar seu dinheiro na mão de pessoas despreparadas, que poderão usar seu dinheiro para o que quiser, inclusive matar policiais, agentes carcerários, ou pessoas de bem.
Quer dizer, ao plantar sua erva em casa, ao invés de você deixar seu dinheiro para um PCC da vida, você gasta dinheiro com fertilizantes, lâmpadas e outros insumos que geram impostos, e o que acontece com você? vocÊ é preso como TRAFICANTE.
O poder público não deve culpar as drogas (elas existem a milhares de anos e nunca irão acabar), pois a culpa é da lei que deixa nas mão de bandidos muitas das drogas existentes e consumidas nos dias de hoje.
Hoje a população de São Paulo paga o preço pela omissão do poder público, mentalidade preconceituosa da maioria, e por um erro histórico nunca consertado: os artigos. 12 e 16 do código penal.
Ridículo.